Tradução: Vítor Guerreiro


Extraído do Livro “Introdução à Filosofia da Religião” de William L. Rowe tradução Vítor Guerreiro e Revisão Científica de Desidério Murcho – Capítulo 3

Introdução

Talvez seja melhor pensar no argumento ontológico não como um único argumento mas como uma família de argumentos, em que cada membro começa com um conceito de Deus e, apelando apenas a princípios a priori, procura estabelecer que Deus existe efectivamente. Nesta família de argumentos, o mais importante historicamente é o apresentado por Anselmo no segundo capítulo do seu Proslogium (um discurso).1 Na verdade, é justo afirmar que o argumento ontológico começa com o Capítulo 2 do Proslogium de S. Anselmo. Numa obra anterior, Monologium (um solilóquio), Anselmo procurara estabelecer a existência e natureza de Deus entretecendo diversas versões do argumento cosmológico. No prefácio ao Proslogium Anselmo comenta que após a publicação do Monologium começou a procurar um único argumento que por si só estabelecesse a existência e natureza de Deus. Depois de muito esforço árduo e infrutífero, Anselmo diznos que procurou afastar o projecto da sua mente, para se dedicar a tarefas mais compensadoras. A ideia, contudo, continuou a assombrálo até que um dia se lhe tornou clara a prova que procurara tão arduamente. É esta prova que Anselmo apresenta no segundo capítulo do Proslogium.

Conceitos fundamentais

Antes de apresentar passo a passo o argumento de Anselmo, será útil introduzir alguns conceitos que nos ajudarão a compreender algumas das ideias centrais que figuram no argumento. Suponhase que desenhamos, na nossa imaginação, uma linha vertical e imaginamos que no lado esquerdo da nossa linha estão todas as coisas que existem e no lado direito da linha estão todas as coisas que não existem. Podíamos então começar a fazer uma lista de algumas coisas que estão em ambos os lados da nossa linha imaginária. A lista poderia começar da seguinte maneira:

COISAS QUE EXISTEM                                             COISAS QUE NÃO EXISTEM

O Empire State Building                                             A Fonte da Juventude

Cães                                                                                 Unicórnios

O planeta Marte                                                           O Abominável Homem das Neves

 

Cada uma das coisas (ou géneros de coisas) apresentadas até agora tem a seguinte característica: logicamente, podia estar no outro lado da linha. A Fonte da Juventude, por exemplo, está no lado direito da linha mas logicamente nada há de absurdo na ideia de que a Fonte da Juventude podia estar no lado esquerdo. De igual modo, embora os cães existam, podemos seguramente imaginar, sem cair em qualquer absurdo lógico, que os cães podiam não ter existido: podiam estar no lado direito da linha. Registremos então esta característica das coisas até agora apresentadas, introduzindo a ideia de coisa contingente: algo que podia logicamente estar no lado da linha oposto ao lado onde efectivamente está. O planeta Marte e o Abominável Homem das Neves são coisas contingentes apesar de o primeiro existir e o último não.

Suponhase que acrescentamos algo à nossa lista, escrevendo no lado direito a expressão «o objecto que é ao mesmo tempo completamente redondo e completamente quadrado». O quadrado redondo, contudo, ao contrário das outras coisas apresentadas no lado direito da linha, é algo que logicamente não podia estar no lado esquerdo. Vendo isto, introduzamos a ideia de coisa impossível como algo que está no lado direito da linha e logicamente não podia estar no lado esquerdo.

Olhando mais uma vez para a nossa lista, surge a questão de haver ou não alguma coisa no lado esquerdo da nossa linha imaginária que, ao contrário das coisas apresentadas até agora no lado esquerdo, logicamente não poderia estar no lado direito. Por enquanto, não temos de responder a esta questão. Mas é útil ter um conceito para aplicar a quaisquer coisas desse género, se as houver. Consequentemente, introduzamos a noção de coisa necessária: algo que está no lado esquerdo da nossa linha imaginária e logicamente não podia estar no direito.

Por fim, podemos introduzir a ideia de coisa possível: qualquer coisa que ou está no lado esquerdo da nossa linha imaginária ou podia logicamente estar no lado esquerdo. As coisas possíveis, portanto, serão todas aquelas que não são impossíveis — isto é, todas aquelas que são ou contingentes ou necessárias. Se não há coisas necessárias, então todas as coisas possíveis serão contingentes e todas as coisas contingentes serão possíveis. Se há algo necessário, contudo, então haverá algo possível que não é contingente.

Munidos com os conceitos que se acabou de explicar podemos passar à clarificação de certas distinções e ideias importantes no pensamento de Anselmo. A primeira é a distinção entre a existência no entendimento e a existência na realidade. A noção que Anselmo tem de existência na realidade é a mesma que a nossa noção de existência — isto é, estar no lado esquerdo da nossa linha imaginária. Como a Fonte da Juventude está no lado direito da linha, não existe na realidade. As coisas que existem são, para usar a expressão de Anselmo, as que existem na realidade. A noção que Anselmo tem de existência no entendimento, contudo, é diferente de qualquer ideia que normalmente usemos. Mas o que Anselmo quer dizer com «existência no entendimento» não é particularmente misterioso. Quando pensamos numa determinada coisa, por exemplo, na Fonte da Juventude, essa coisa, na perspectiva de Anselmo, existe no entendimento. Pelo que algumas coisas que estão em ambos os lados da nossa linha imaginária existem no entendimento, mas apenas as que estão no lado esquerdo da linha existem na realidade. Haverá alguma coisa que não exista no entendimento? Sem dúvida. Porquanto há coisas, quer existentes quer inexistentes, nas quais nunca pensámos. Suponhase agora que afirmo que a Fonte da Juventude não existe. Como para negar inteligivelmente a existência de algo tenho de ter esse algo em mente, seguese, na perspectiva de Anselmo, que sempre que alguém afirma que algo não existe, esse algo existe no entendimento.2 Pelo que ao afirmar que a Fonte da Juventude não existe estou a pressupor que a Fonte da Juventude existe no entendimento. E ao afirmar que não existe afirmei (na perspectiva de Anselmo) que não existe na realidade. Isto significa que a minha afirmação simples de que a Fonte da Juventude não existe equivale à afirmação algo mais complexa de que a Fonte da Juventude existe no entendimento mas não na realidade — em resumo, que a Fonte da Juventude existe apenas no entendimento.

Tendo em conta o que foi dito, podemos compreender por que Anselmo insiste que qualquer pessoa que ouve Deus, pensa em Deus, ou até mesmo que nega a existência de Deus está ainda assim comprometida com a perspectiva de que Deus existe no entendimento. Além disso, podemos compreender por que Anselmo trata aquilo a que chama a afirmação do tolo, de que Deus não existe, como a afirmação de que Deus existe apenas no entendimento — isto é, que Deus existe no entendimento mas não na realidade.

No Monologium, Anselmo procurou provar que entre os seres que efectivamente existem há um que é o maior, o mais elevado e o melhor. Mas no Proslogium, Anselmo empenhase em provar que entre as coisas que existem, há uma que não só é a maior entre os seres existentes, mas é tal que nenhum ser concebível é maior. Temos de distinguir entre estas duas ideias: 1) um ser maior do que o qual nenhum ser existe, e 2) um ser maior do que o qual nenhum ser é concebível. Se as únicas coisas a existir fossem uma pedra, uma rã e um ser humano, a última destas, o ser humano, satisfaria a nossa primeira ideia mas não a segunda — pois podemos conceber um ser (um anjo ou Deus) maior do que um humano. A ideia que Anselmo tem de Deus, como a exprime no Proslogium, Capítulo 2, é a mesma que em 2 acima; é a ideia de «um ser maior do que o qual nada se pode conceber». Penso que nos será mais fácil compreender o argumento de Anselmo se fizermos duas ligeiras alterações ao modo como ele exprimiu a sua ideia de Deus. No lugar da sua expressão colocarei o seguinte: «o ser maior do que o qual nenhum é possível».3 Esta ideia diz que se um determinado ser é Deus, então nenhum ser possível pode ser maior do que aquele; ou, conversamente, se um dado ser é tal que é possível haver um maior do que ele, então esse ser não é Deus. O que Anselmo se propõe então demonstrar é que o ser maior do que o qual nenhum é possível existe na realidade. Demonstrando isto, terá demonstrado que Deus, como o concebe, existe na realidade.

Mas o que entende Anselmo por maior? Será um edifício, por exemplo, maior do que um homem? Anselmo observa: «Mas não me refiro à grandeza física, o modo como um objecto material é grande, mas àquilo que é tanto maior quanto melhor ou mais digno é — a sabedoria, por exemplo».4 Contrastese a sabedoria com o tamanho. Anselmo afirma que a sabedoria é algo que contribui para a grandeza de uma coisa. Se algo passa a ter mais sabedoria do que antes (permanecendo as outras características na mesma), então esse algo tornouse maior, melhor, mais digno do que antes. Anselmo afirma que a sabedoria é uma qualidade produtora de grandeza. Mas o mero facto de algo aumentar em tamanho (grandeza física) não torna esse algo melhor do que era antes. Pelo que o tamanho, ao contrário da sabedoria, não é uma qualidade produtora de grandeza. Por maior do que Anselmo entende melhor do que, superior a, ou mais digno do que, e considera que algumas características, como a sabedoria e a bondade moral, são produtoras de grandeza, na medida em que qualquer coisa que as tenha se torna uma coisa melhor do que seria se não as tivesse (mantendose iguais as suas outras características).

Chegamos agora ao que podemos chamar a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo. Anselmo pensa que a existência na realidade é uma qualidade produtora de grandeza. Como devemos entender esta ideia? Será que Anselmo quer dizer que uma coisa que existe é maior do que uma que não existe? Embora Anselmo não coloque esta questão nem lhe responda, é talvez razoável pensar que não queria dizer isto. Isto porque quando discute a sabedoria como uma qualidade produtora de grandeza, Anselmo tem o cuidado de não afirmar que qualquer coisa sábia é melhor do que qualquer coisa néscia; Anselmo reconhece que uma pessoa justa mas néscia pode ser melhor do que uma pessoa sábia mas injusta.5 Sugiro que Anselmo queria que qualquer coisa que não existe mas podia ter existido (que está no lado direito da nossa linha mas podia estar no esquerdo) seria maior do que é se tivesse existido (se estivesse no lado esquerdo da nossa linha). Anselmo não está a comparar duas coisas diferentes (uma existente e outra inexistente), afirmando que a primeira é portanto maior do que a segunda. Ao invés, está a falar acerca de uma única coisa e a chamar a atenção para o facto de que se não existe mas podia ter existido, então essa coisa seria maior se tivesse existido. Usando a distinção que Anselmo faz entre a existência no entendimento e a existência na realidade, podemos exprimir do seguinte modo a ideia crucial do seu raciocínio: Se algo existe apenas no entendimento, mas podia ter existido na realidade, então podia ser maior do que é. Como a Fonte da Juventude, por exemplo, existe apenas no entendimento mas, ao contrário do quadrado redondo, podia existir na realidade, seguese do princípio de Anselmo que a fonte da juventude podia ser maior do que é.

Desenvolvendo o argumento ontológico de Anselmo

Depois de termos visto algumas das ideias importantes em causa no argumento ontológico de Anselmo, podemos considerar o seu desenvolvimento gradual. Ao apresentar o argumento de Anselmo vou usar o termo Deus em lugar da expressão mais longa «o ser maior do que o qual nenhum é possível»; sempre que o termo Deus aparece devemos pensar nele apenas como uma abreviatura da expressão mais longa.

1. Deus existe no entendimento.

Como vimos, quem quer que tenha ouvido falar no ser maior do que o qual nenhum é possível está, na perspectiva de Anselmo, comprometido com a premissa 1. 

2. Deus poderia existir na realidade (Deus é um ser possível).

Creio que Anselmo supõe a verdade da premissa 2 sem que o faça de modo explícito na sua argumentação. Ao afirmar 2, não pretendo sugerir que Deus não existe na realidade. Tudo o que se quer dizer é que, ao contrário do quadrado redondo, Deus é um ser possível.

3. Se algo existe apenas no entendimento e podia existir na realidade, então podia ser maior do que é.

Como vimos, esta é a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo. Pretendese que seja um princípio geral que se aplica a qualquer coisa.

Os passos 1 a 3 constituem as premissas fundamentais do argumento ontológico de Anselmo. Destes três itens seguese, segundo Anselmo, que Deus existe na realidade. Mas como se propõe Anselmo convencernos de que se aceitamos as premissas de 1 a 3 estamos comprometidos pelas regras da lógica a aceitar a sua conclusão de que Deus existe na realidade? Anselmo defende a sua conclusão apresentando o que se chama uma «demonstração por reductio ad absurdum». Em vez de mostrar directamente que a existência de Deus se segue das premissas 1 a 3, Anselmo convidanos a supor que Deus não existe (isto é, que a conclusão que ele deseja estabelecer é falsa) e então mostra como esta suposição, quando a combinamos com as premissas de 1 a 3, leva a um resultado absurdo, um resultado que não podia de modo algum ser verdadeiro porque é contraditório. Em resumo, com a ajuda das premissas 1 a 3 Anselmo mostra que a suposição de que Deus não existe se reduz a um absurdo. Uma vez que a suposição de que Deus não existe leva a um absurdo, tem de se rejeitar essa suposição, a favor da conclusão de que Deus existe.

Conseguirá Anselmo reduzir ao absurdo a crença do tolo, de que Deus não existe? A melhor maneira de responder a esta questão é seguir os passos do seu argumento.

4. Suponhase que Deus existe apenas no entendimento.

Esta suposição, como vimos, é a maneira de Anselmo exprimir a crença do tolo de que Deus não existe.

5. Deus podia ser maior do que é. (2, 4 e 3)

O passo 5 seguese dos passos 2, 4 e 3. Como 3, se for verdadeiro, se aplica a qualquer coisa, aplicarseá a Deus. O passo 3, portanto, implica que se Deus existe apenas no entendimento e podia existir na realidade, então Deus podia ser maior do que é. Se é assim, então dados os passos 2 e 4, o passo 5 tem de ser verdadeiro. Porquanto o que o passo 3 afirma, quando aplicado a Deus, é que dados os passos 2 e 4, seguese 5.

6. Deus é um ser maior do que o qual é possível haver outro.

Seguramente que se Deus é tal que podia logicamente ter sido maior, então Deus é um ser tal que é possível haver outro maior.

Estamos agora em condições de avaliar o argumento por redução ao absurdo de Anselmo. Mostrounos que se aceitamos os passos de 1 a 4 temos de aceitar o passo 6. Mas 6 é inaceitável; é o absurdo que Anselmo procurava. Isto porque ao substituir Deus no passo 6 pela expressão mais longa à qual serve de abreviação, vemos que 6 equivale à seguinte afirmação absurda:

7. O ser maior do que o qual nenhum é possível é um ser tal que um ser maior é possível.

Como os passos de 1 a 4 nos levam a uma conclusão obviamente falsa, se aceitarmos as premissas 1 a 3, as premissas fundamentais de Anselmo, como verdadeiras, então temos de rejeitar como falsa a premissa 4: a suposição de que Deus existe apenas no entendimento. Assim mostrámos que:

8. É falso que Deus exista apenas no entendimento.

Mas uma vez que a premissa 1 nos diz que Deus existe no entendimento, e a premissa 8 nos diz que Deus não existe apenas aí, podemos inferir que:

9. Deus existe na realidade bem como no entendimento. (1, 8)

O que dizer deste argumento? Na sua maioria, os filósofos que o ponderaram rejeitaramno devido à convicção fundamental de que a partir da análise lógica de uma certa ideia ou conceito nunca podemos determinar se existe na realidade qualquer coisa que satisfaça essa ideia ou conceito.

Podemos examinar, por exemplo, a ideia de um elefante ou a ideia de um unicórnio, mas é apenas através da experiência que temos do mundo que podemos determinar se existem coisas que satisfaçam a nossa primeira ideia e não a segunda. Anselmo, contudo, pensa que o conceito de Deus é absolutamente único; pensa que a partir de uma análise deste conceito se pode determinar que existe na realidade um ser que o satis faz. Além disso, Anselmo apresentanos um argumento para mostrar que isso se pode fazer no caso da ideia de Deus. Podemos, como é óbvio, rejeitar simplesmente o seu argumento por violar a convicção fundamental acima indicada. Muitos críticos, contudo, procuraram provar de um modo mais directo que o argumento de Anselmo é mau e chamar a atenção para o passo particular que está incorrecto. No que se segue, examinaremos as três principais objecções que foram apresentadas pelos críticos do argumento.

A crítica de Gaunilo

A primeira crítica importante foi apresentada por um contemporâneo de Anselmo, um monge de nome Gaunilo, que escreveu uma objecção intitulada «Em Defesa do Tolo».7 Gaunilo procurou provar que o raciocínio de Anselmo é incorrecto, aplicando-o a coisas que não são Deus, coisas que sabemos que não existem. Gaunilo tomou como exemplo a ilha maior do que a qual nenhuma é possível. Não existe realmente qualquer ilha assim. Mas, argumenta Gaunilo, se o raciocínio de Anselmo estivesse correcto podíamos mostrar que tal ilha existe realmente. Como existir é maior do que não existir, se a ilha maior do que a qual nenhuma é possível não existe, então essa é uma ilha maior do que a qual é possível haver outra. Mas é impossível que a ilha maior do que a qual nenhuma é possível seja uma ilha maior do que a qual é possível haver outra. Portanto, a ilha maior do que qual nenhuma é possível tem de existir. Acerca deste argumento, comenta Gaunilo:

“Se um homem tentasse mostrarme através de tal raciocínio que esta ilha existe realmente e que não se devia duvidar mais da sua existência, das duas, uma: ou pensava que ele estava a brincar, ou já não sabia qual de nós era o maior tolo: eu mesmo, supon do que aceitava esta prova; ou ele, se supusesse que tinha estabelecido com alguma cer teza a existência desta ilha.”8

A estratégia de Gaunilo é clara. Usando o mesmo raciocínio que Anselmo usa no seu argumento, podemos provar a existência de coisas que sabemos que não existem. Portanto, o raciocínio de Anselmo na sua prova da existência de Deus tem de estar incorrecto. Na sua resposta a Gaunilo, Anselmo insistiu em que o seu raciocínio se aplica apenas a Deus e não pode ser usado para estabelecer a existência de outras coisas além de Deus. Infelizmente, Anselmo não explicou ao certo por que razão o seu raciocínio não se pode aplicar a coisas como a ilha de Gaunilo.

Em defesa de Anselmo contra a objecção de Gaunilo, devese observar que a objecção supõe que a ilha de Gaunilo é uma coisa possível. Mas isto exige que acreditemos que uma coisa finita e limitada (uma ilha) possa ter perfeições ilimitadas. E não é de todo em todo claro que isto seja possível. Tentese pensar, por exemplo, num jogador de hóquei maior do que o qual nenhum é possível. Quão depressa teria esse jogador de patinar? Quantos golos teria tal jogador de marcar num jogo? Quão rápido teria de arremessar o disco? Será que este jogador poderia alguma vez cair, ser bloqueado, ou sofrer uma penalidade? Embora a expressão «O jogador de hóquei maior do que o qual nenhum é possível» pareça ter significado, assim que tentamos obter uma ideia clara de como seria tal ser, descobrimos que não podemos sequer formar uma ideia coerente dele. Isto porque nos pede para pensar numa coisa finita e limitada — um jogador de hóquei ou uma ilha — para depois pensarmos que essa coisa exibe perfeições infinitas e ilimitadas. Talvez então, visto que o raciocínio de Anselmo se aplica apenas a coisas possíveis, Anselmo possa rejeitar que seja aplicável à ilha de Gaunilo, com base em que a ilha maior do que a qual nenhuma é possível é, como o quadrado redondo, uma coisa impossível.

A crítica de Kant

A objecção de longe mais famosa ao argumento ontológico foi formulada por Immanuel Kant no século XVIII. Segundo esta objecção, o erro contido no argumento é a afirmação, implícita na premissa 3, de que a existência é uma qualidade ou predicado que torna qualquer coisa maior. Esta afirmação tem duas partes: 1) a existência é uma qualidade ou predicado e 2) a existência, como a sabedoria e ao contrário da grandeza física, é uma qualidade ou predicado produtor de grandeza. Podese aceitar 1 mas objectar a 2. A objecção que Kant tornou famosa, contudo, dirigese a 1. Segundo esta objecção, a existência não é de modo algum um predicado. Portanto, como o argumento de Anselmo implica, na terceira premissa, que a existência é um predicado, tem de se rejeitar o argumento.

O que se quererá dizer com a doutrina filosófica de que a existência não é um predicado? A ideia central nesta doutrina diz respeito ao que fazemos quando atribuímos uma certa qualidade ou predicado a uma coisa, como, por exemplo, quando dizemos que uma mulher que mora ao nosso lado é inteligente, tem um metro e oitenta de altura, ou é magra. Em cada caso parece que afirmamos ou pressupomos que existe uma mulher que mora ao lado atribuindolhe depois um certo predicado — «inteligente», «com um metro e oitenta de altura» ou «magra». E o que muitos defensores da doutrina de que a existência não é um predicado defendem é que isto é uma característica geral da predicação. Defendem que quando atribuímos uma qualidade ou predicado a uma coisa, afirmamos ou pressupomos que a coisa existe e então atribuímos lhe o predicado. Se isto for verdade, então é claro que a existência não pode ser um predicado que possamos atribuir ou negar a algo. Visto que se fosse um predicado, então quando afirmamos que algo existe estaríamos a afirmar ou a pressupor que existe passando então a predicar a sua existência. Por exemplo, se a existência fosse um predicado, então ao afirmar «Os tigres existem» estaríamos a afirmar ou a pressupor que os tigres existem para depois predicar a sua existência. Além disso, se a existência fosse um predicado, quando afirmássemos «os dragões não existem», estaríamos a afirmar ou a pressupor que os dragões existem, para depois negar que a existência se lhes aplique. Resumindo, se a existência fosse um predicado, a declaração existencial afirmativa «Os tigres existem» seria redundante, e a declaração existencial negativa «Os tigres não existem» seria contraditória. Mas é óbvio que «Os tigres existem» não é redundante e que «Os dragões não existem» é verdadeira e, portanto, não é contraditória. Segundo os defensores da objecção de Kant, isto mostra que a existência não é um predicado genuíno.

Segundo os defensores da objecção anterior, quando afirmamos que os tigres existem e que os dragões não existem não afirmamos que certas coisas (os tigres) têm um predicado especial ao passo que outras (os dragões) não têm: a existência. Ao invés, afirmamos algo acerca do conceito de tigre e do conceito de dragão. No primeiro caso afirmamos que há algo no mundo ao qual o conceito de tigre se aplica; no segundo, afirmamos que nada há no mundo ao qual o conceito de dragão se aplique.

Embora esta objecção ao argumento ontológico tenha tido ampla aceitação, é duvidoso que seja uma refutação conclusiva do argumento. Pode ser verdade que a existência não é um predicado; que ao afirmar a existência de uma coisa não estamos a atribuir um determinado predicado ou atributo a essa coisa. Mas os argumentos apresentados a favor desta perspectiva parecem assentar em afirmações incorrectas ou incompletas acerca da natureza da predicação. Por exemplo, o argumento que enunciámos assenta na afirmação de que quando atribuímos um predicado a qualquer coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe. Mas esta afirmação parece incorrecta. Ao afirmar que o Dr. Doolittle é um zoófilo parece que estou a atribuir o predicado zoófilo ao Dr. Doolittle, mas ao fazêlo não estou seguramente a afirmar ou a pressupor que o Dr. Doolittle existe efectivamente. Embora não exista, é verdade que o Dr. Doolittle é um zoófilo. O que é facto é que podemos falar acerca de muitas coisas que não existem e nunca existiram, e atribuir predicados a essas coisas. Merlin, por exemplo, como Houdini, era um mágico, embora Houdini tenha existido e Merlin não. Se, como os exemplos sugerem, a afirmação de que sempre que atribuímos um predicado a alguma coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe é uma afirmação falsa, então precisaremos de um argumento melhor para defender a doutrina de que a existência não é um predicado. Há dúvidas, contudo, sobre se alguém terá conseguido apresentar um argumento realmente conclusivo a favor da perspectiva de que a existência não é um predicado.9

Uma terceira crítica

Uma terceira objecção ao argumento ontológico põe em causa a premissa de que Deus poderia existir na realidade (que Deus seja um ser possível). Como vimos, esta premissa afirma que «o ser maior do que o qual nenhum é possível» não é um objecto impossível. Mas será isto verdade? Considerese a série dos números naturais — 1, 2, 3, 4, etc. Sabemos que qualquer número inteiro nesta série, por maior que seja, é tal que é possível outro número maior. Portanto, «o número natural maior do que o qual nenhum é possível» é um objecto impossível. Talvez isto também se aplique a «o ser maior do que o qual nenhum é possível». Isto é, talvez seja possível, independentemente da grandeza de um ser, haver outro maior. Se assim for, portanto, o Deus de Anselmo não seria um objecto possível, assim como não o é «o número natural maior do que o qual nenhum é possível». O simples facto de haver graus de grandeza, contudo, não nos permite concluir que o Deus de Anselmo é como «o número natural maior do que o qual nenhum é possível». Os ângulos, por exemplo, têm graus de tamanho — um ângulo pode ser maior do que outro — mas não é verdade que independentemente do tamanho de um ângulo, seja possível haver um maior. É logicamente impossível que um ângulo exceda a dimensão de quatro ângulos rectos. A noção de ângulo, ao contrário da noção de número natural, implica um grau de tamanho que é impossível ultrapassar. Será o Deus de Anselmo como o maior número natural, e portanto impossível, ou como o maior ângulo, e portanto possível? Alguns filósofos argumentaram que o Deus de Anselmo é impossível.10 Mas os argumentos a favor desta conclusão não são persuasivos. Talvez por isso se interprete melhor esta objecção não como prova de que o Deus de Anselmo é impossível, mas como o levantar da questão de algum de nós estar ou não em condições de saber que «o ser maior do que o qual nenhum é possível» é um objecto possível. Pois o argumento de Anselmo não pode ser uma prova eficaz da existência de Deus a menos que as suas premissas sejam não só verdadeiras, mas também que se saiba que são verdadeiras. Logo, se não sabemos que o Deus de Anselmo é um objecto possível, então o seu argumento não pode provarnos a existência de Deus — não nos permite saber que Deus existe.

Uma última crítica 

Demos uma vista de olhos ao argumento de Anselmo e às três principais objecções que outros filósofos lhe levantaram. Nesta última secção apresento uma crítica algo diferente ao argumento, uma crítica sugerida pela convicção fundamental que se indicou antes — nomeadamente, que da mera análise lógica de uma certa ideia ou conceito, nunca podemos determinar que existe alguma coisa na realidade que satisfaça essa ideia ou conceito.

Suponhase que alguém se nos dirige e diz:

“Proponhome definir o termo Deus como um ser absolutamente perfeito, que existe. Uma vez que não pode ser verdade que um ser absolutamente perfeito, que existe, não exista, não pode ser verdade que Deus, como o defini, não exista. Portanto, Deus tem de existir.”

Isto parece um argumento ontológico muito simples. Começa com uma ideia parti cular ou conceito de Deus e termina concluindo que Deus, concebido desse modo, tem de existir. O que podemos responder a isto? Podemos começar por objectar a esta definição de Deus, afirmando 1) que só se pode definir um termo com predicados e 2) que a existência não é um predicado. Mas suponhase que o nosso amigo não se deixa impressionar por esta resposta — quer porque pensa que ninguém explicou exaustivamente o que é um predicado, nem provou que a existência não é um predicado, quer porque pensa que qualquer pessoa pode definir uma palavra do modo como bem lhe apetece. Podemos aceitar que o nosso amigo defina a palavra Deus como bem lhe apeteça e esperar ainda assim mostrar que dessa definição não se segue que existe efectivamente algo a que este conceito de Deus se aplica? Penso que sim. Convidemolo primeiro, contudo, a considerar alguns conceitos além do seu peculiar conceito de Deus.

Vimos que o termo mágico se pode aplicar tanto a Houdini como a Merlin, ainda que o primeiro tenha existido ao passo que o segundo nunca existiu. Observando que o nosso amigo usou que existe como parte da sua definição de Deus, suponhase que concordamos com ele em poder definir uma palavra do modo como nos apetecer introduzindo, consequentemente, as seguintes palavras com as seguintes definições:

Definese magião como um mágico que existe.

Definise mágio como um mágico inexistente.

Aqui introduzimos duas palavras e usámos que existe e inexistente nas suas defini ções. Seguese agora algo interessante do facto de que existe fazer parte da nossa definição de um magião. Pois embora sendo verdade que Merlin era um mágico, não é verdade que Merlin fosse um magião. E seguese algo interessante de termos incluído inexistente na definição de mágio. Pois embora sendo verdade que Houdini foi um mágico, não é verdade que foi um mágio. Houdini foi um mágico e um magião, mas não um mágio, ao passo que Merlin era um mágico e um mágio, mas não um magião.

Acabámos de ver que introduzir que existe ou inexistente na definição de um conceito tem uma consequência muito importante. Se introduzimos que existe na definição de um conceito, seguese que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar esse conceito. E se introduzimos inexistente na definição de um conceito, seguese que nenhuma coisa existente pode exemplificar esse conceito. Nenhuma coisa inexistente pode ser um magião e nenhuma coisa existente pode ser um mágio.

Mas terá alguma coisa existente de exemplificar o conceito de magião? Não! Do facto de se incluir que existe na definição de magião não se segue que algo existente é um magião — tudo o que se segue é que nenhuma coisa inexistente é um magião. Se não existissem quaisquer mágicos, nada haveria a que se pudesse aplicar o conceito de magião. Sendo assim, é óbvio que não se segue meramente da nossa definição de magião que algo existente é um magião. Só se existirem mágicos é que será verdade que uma coisa existente é um magião.

Estamos agora em condições de ajudar o nosso amigo a ver que, do mero facto de se definir Deus como ser absolutamente perfeito que existe, não se segue que há um ser existente que seja Deus. Seguese algo interessante desta definição — nomeadamente, que nenhum ser inexistente pode ser Deus. Mas o facto de haver ou não algo existente que seja Deus depende inteiramente de haver ou não algo existente que seja um ser absolutamente perfeito. Se não existe qualquer ser absolutamente perfeito, nada haverá a que se possa aplicar este conceito de Deus. Sendo assim, é óbvio que não se segue meramente desta definição de Deus que há algo existente que seja Deus. Só se existir um ser absolutamente perfeito é que será verdade que Deus, como o nosso amigo o concebe, existe.

Implicações para o argumento de Anselmo

Podese agora seguir as implicações destas considerações para o engenhoso argumento de Anselmo. Anselmo imagina Deus como um ser maior do que o qual nenhum é possível. Afirma então que a existência é uma qualidade produtora de grandeza; qualquer coisa que a tenha é maior do que seria se lhe faltasse a existência. É então óbvio que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar o conceito anselmiano de Deus. Porquanto se supomos que algo inexistente exemplifica o conceito anselmiano de Deus e se também supomos que esse algo inexistente podia existir na realidade (ou seja, se supomos que é algo possível), então supomos que esse algo inexistente 1) podia ser maior e 2) é, ainda assim, uma coisa maior do que a qual não é possível haver outra. Até aqui o raciocínio de Anselmo é, segundo penso, irrepreensível. Mas o que se segue daí? Tudo o que daí se segue é que nenhuma coisa inexistente pode ser Deus (como Anselmo o imagina). Tudo o que se segue é que dado o conceito anselmiano de Deus, a proposição «Alguma coisa inexistente é Deus» não pode ser verdadeira. Mas, como vimos, isto também acontece com a proposição «Alguma coisa inexistente é um magião». Falta mostrar que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano de Deus. O que realmente se segue deste raciocínio é que só algo que exista efectivamente pode logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. E esta conclusão não é desinteressante. Mas do simples facto de que nada senão algo existente poderia exemplificar o conceito anselmiano de Deus não se segue que algo existente exemplifica efectivamente o seu conceito de Deus — do mesmo modo que não se segue do simples facto de nenhuma coisa inexistente poder ser um magião que alguma coisa existente é um magião.11

Há, contudo, uma dificuldade importante nesta crítica ao argumento de Anselmo. Esta dificuldade surge quando atentamos na sua afirmação implícita de que Deus é uma coisa possível. Para ver ao certo o que é esta dificuldade, regressemos à ideia de coisa possível. Uma coisa possível, segundo determinámos, é qualquer coisa que está ou no lado esquerdo da nossa linha imaginária ou que logicamente podia estar no lado esquerdo da linha. As coisas possíveis, então, serão todas as coisas que, ao contrário do quadrado redondo, não são impossíveis. Suponhase que concedemos a Anselmo que Deus, como ele o concebe, é uma coisa possível. É claro que o mero conhecimento de que algo é uma coisa possível não nos permite concluir que essa coisa é uma coisa existente. Visto que muitas coisas possíveis, como a Fonte da Juventude, não existem. Mas se algo é uma coisa possível, então ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Podese dividir exaustivamente o conjunto das coisas possíveis em coisas possíveis que existem efectivamente e coisas possíveis que não existem. Portanto, se o Deus de Anselmo é uma coisa possível, ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Concluímos, contudo, que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo; portanto, parece que temos de concluir com Anselmo que alguma coisa efectivamente existente exemplifica de facto o seu conceito de Deus.

Para ver a solução desta importante dificuldade precisamos de regressar a um exemplo anterior. Consideremos mais uma vez a ideia de um magião, um mágico existente. Por acaso têm existido mágicos — Houdini, o Grande Blackstone, e outros. Mas, obviamente, podia não ter sido assim. Suponhase, momentaneamente, que nunca tinham existido quaisquer mágicos. O conceito de «mágico» teria ainda aplicação, pois continuaria a ser verdade que Merlin era um mágico. E quanto ao conceito de «magião»? Será que esse conceito discriminaria qualquer objecto possível? Não! Pois nenhuma coisa inexistente poderia exemplificar o conceito de «magião». E supondo que nunca existiram mágicos, nenhuma coisa existente exemplificaria o conceito de «magião».12 Teríamos então o conceito coerente de «magião», que não seria exemplificado por qualquer objecto possível. Pois se todos os objectos possíveis que são mágicos fossem coisas inexistentes, nenhum deles seria um magião; e como nenhum objecto possível que existe seria um mágico, nenhum seria um magião. Teríamos então o conceito coerente e consistente de «magião», que na verdade não é exemplificado por qualquer objecto possível. Formulada assim, a nossa conclusão parece paradoxal. Visto que nos inclinamos a pensar que só conceitos contraditórios, como «quadrado redondo», não são exemplificados por quaisquer coisas possíveis. A verdade, contudo, é que quando que existe está incluído num certo conceito ou é por ele implicado, pode acontecer que nenhum objecto possível exemplifique de facto esse conceito. Pois nenhum objecto possível que não exista exemplificará um conceito como «magião», que inclui que existe; e se não há coisas existentes que exemplifiquem as outras características incluídas no conceito — por exemplo, «ser um mágico» no caso do conceito «magião» — então nenhum objecto possível que exista exemplificará o conceito. Dito da forma mais simples: ao perguntar se qualquer coisa possível é ou não um magião, a resposta dependerá inteiramente de haver ou não quaisquer coisas existentes que sejam mágicos. Se nenhuma coisa existente é um mágico, então nenhuma coisa possível é um magião. Um objecto possível é um magião só se alguma coisa efectivamente existente for um mágico.13

Aplicando estas considerações ao argumento de Anselmo podemos ver a solução da nossa importante dificuldade. Dado o conceito anselmiano de Deus e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza, seguese de facto que só algo efectivamente existente poderia logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. Mas argumentámos que não se segue, a partir destas considerações apenas, que Deus existe efectivamente — que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano de Deus. A dificuldade com que nos deparámos, contudo, é que ao adicionar a premissa de que Deus é uma coisa possível, ou seja, a premissa de que algum objecto possível exemplifica o conceito anselmiano de Deus, seguese realmente que Deus existe efectivamente: que algo efectivamente existente exemplifica o seu conceito de Deus. Pois se um objecto possível exemplifica o seu conceito de Deus, esse objecto ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Mas uma vez que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar o conceito anselmiano de Deus, seguese que o objecto possível que exemplifica o seu conceito de Deus tem de ser um objecto possível que exista efectivamente. Portanto, dado 1) o conceito anselmiano de Deus, 2) o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza e 3) a premissa de que Deus, como Anselmo o concebe, é uma coisa possível, seguese de facto que o Deus de Anselmo existe efectivamente.

Uma concessão demasiado generosa

Penso que podemos ver que ao conceder a Anselmo a premissa de que Deus é uma coisa possível concedemos muito mais do que pretendíamos. Pensámos conceder apenas que o conceito anselmiano de Deus, ao contrário do conceito de quadrado redondo, não é contraditório nem incoerente. Mas sem nos apercebermos, estávamos de facto a conceder muito mais do que isto, como se tornou visível quando considerámos a ideia de «magião». Nada há de contraditório na ideia de um magião, um mágico que existe. Mas ao afirmar que um magião é uma coisa possível, estamos, como vimos, a sugerir directamente que alguma coisa existente é um mágico. Pois se nenhuma coisa existente é um mágico, o conceito de magião não se aplicará de modo algum a qualquer objecto possível. A mesma ideia se aplica ao Deus de Anselmo. Uma vez que o conceito anselmiano de Deus não se pode logicamente aplicar a uma coisa inexistente, os únicos objectos possíveis aos quais se poderá aplicar são objectos possíveis que existam efectivamente. Portanto, ao conceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possível, não estamos a conceder apenas que a sua ideia de Deus não é incoerente nem contraditória. Suponhase, por exemplo, que todo o ser existente tem uma imperfeição que podia não ter tido. Sem nos apercebermos, estávamos a negar isto ao conceder que o Deus de Anselmo é um ser possível. Pois se todo o ser existente tem um defeito que podia não ter tido, então todo o ser existente podia ser maior. Mas se todo o ser existente podia ser maior, então o conceito anselmiano de Deus não se aplicará a qualquer objecto possível. Portanto, se concedemos a Anselmo o seu conceito de Deus e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza, então ao conceder que Deus, como Anselmo o concebe, é um ser possível, estaremos a conceder muito mais do que a coerência do seu conceito de Deus. Estaremos a conceder, por exemplo, que uma coisa existente é tão perfeita quanto o pode ser. Pois a verdade é que só se alguma coisa existente for tão perfeita quanto o pode ser é que o Deus de Anselmo será uma coisa possível.

A nossa última crítica ao argumento de Anselmo é apenas esta. Ao conceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possível, estamos de facto a conceder que o Deus de Anselmo existe efectivamente. Mas como o objectivo do argumento era provar que o Deus de Anselmo existe, não se pode pedir que concedamos em lugar de premissa uma afirmação que quase equivale à conclusão que se tem de provar. O conceito anselmiano de Deus pode ser coerente e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza pode ser verdadeiro. Mas tudo o que daqui se segue é que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo. Se a tudo isto acrescen tarmos a premissa de que Deus é uma coisa possível, seguirseá que Deus existe efectivamente. Mas a premissa adicional não afirma apenas que o conceito anselmiano de Deus não é incoerente nem contraditório. Equivale à afirmação de que um ser existente é supremamente grandioso. E como em parte é isto que o argumento procura pro var, cai em petição de princípio: pressupõe a ideia cuja verdade devia provar.

Se a crítica acima está correcta, o argumento de Anselmo não pode ser uma prova da existência de Deus. Contudo, isto não equivale a afirmar que o argumento não é um trabalho de génio. Talvez nenhum outro argumento na história do pensamento tenha levantado tantas questões filosóficas fundamentais e estimulado tanta reflexão. Mesmo não conseguindo ser uma prova da existência de Deus, continuará a ser uma das maiores façanhas do intelecto humano.

 

1. Alguns filósofos pensam que Anselmo apresenta um argumento diferente e mais cogente no Capítulo 3 do seu Proslogium. Para este ponto de vista, ver Charles Hartshorne, Anselm’s Discovery (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1965) e Norman Malcom, «Anselm’s Ontological Arguments», The Philosophical Review LXIX, n.º 1 (1960), pp. 4162. Para uma explicação esclarecedora das intenções de Anselmo no Proslogium, II e III, e em recentes interpretações de Anselmo, ver o ensaio de Arthur C. McGill, «Recent Discussions of Anselm’s Argument» em The ManyFaced Argument, org. John Hick e Arthur C. McGill (Nova Iorque: The MacMillan Co., 1967), pp. 33110. [Santo Anselmo, Proslogion, trad. Costa Macedo, Porto: Porto Editora, 1996.]

2. Anselmo admite que se possa pronunciar a frase «Deus não existe» sem que se tenha no entendimento o objecto ou ideia que a palavra Deus refere. Ver Santo Anselmo, Proslogium, IV, em Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N. Deane (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1962). Mas quando se compreende de facto o objecto que a palavra refere, então quando se usa a palavra numa frase que nega a existência desse objecto, tem de se ter esse objecto no entendimento. É duvidoso, contudo, que Anselmo pensasse que as expressões incoerentes ou contraditórias como quadrado redondo refiram objectos que podem existir no entendimento.

3. Anselmo fala de um ser em vez de o ser maior do que o qual nenhum ser se pode conceber. O seu argumento é mais fácil de apresentar se exprimirmos a sua ideia de Deus em termos de o ser. Em segundo lugar, para evitar as conotações psicológicas de se pode conceber substituí essa expressão por possível.

4. S. Anselmo, Monologium, II, em Saint Anselm: Basic Writings.

5. S. Anselmo, Monologium, XV, em Saint Anselm: Basic Writings.

6. Os números entre parêntesis referemse a passos anteriores no argumento, do qual se deriva o presente passo.

7. O breve ensaio de Gaunilo, a resposta de Anselmo, e várias das principais obras de Anselmo, traduzidas por Sidney N. Deane, estão coligidas em Saint Anselm: Basic Wri tings.

8. Deane, Saint Anselm: Basic Writings, p. 151.

9. Talvez a apresentação mais sofisticada da objecção segundo a qual a existência não é um predicado seja a de William P. Alston, «The Ontological Argument Revisited», The Philosophical Review, LXIX (1960), pp. 452–474.

10. Ver, por exemplo, a discussão que C. D. Broad faz do argumento ontológico, em Reli gion, Philosophy, and Physical Research (Nova Iorque: Harcourt, Brace & Co., 1953).

11. Podese encontrar um argumento segundo estas linhas no esclarecedor ensaio de J. Shaffer, «Existence, Predication and the Ontological Argument», Mind LXXI (1962), pp. 307–325.

12. Estou em dívida para com o Professor William Wainwright, por me chamar a atenção para esta ideia.

13. Na linguagem dos mundos possíveis, podemos afirmar que um objecto x é um magião num mundo possível w, desde que i) x seja um mágico em w e ii) x seja um mágico em qualquer mundo que seja o mundo efectivo. Para mais informação sobre este assunto, bem como uma discussão crítica de algumas versões do argumento ontológico, ver o meu ensaio «Modal Versions of the Ontological Argument» em Louis Pojman, org. Philosophy of Religion: An Anthology, 3.ª ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1998).






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