Autor: Michael Martin
Tradução: Gilmar dos Santos, originalmente publicado no Rebeldia Metafísica

Alguns filósofos cristãos propuseram um argumento inacreditável segundo o qual a lógica, a ciência e a moralidade pressupõem a veracidade da cosmovisão cristã porque a lógica, a ciência e a moralidade dependem da veracidade desta cosmovisão [1]. Este argumento é chamado por seus defensores de Argumento Transcendental Para a Existência de Deus e eu o abreviarei como ATD. [Nota do Tradutor: uma das curiosas e paradoxais implicações do ATD é que um argumento para a inexistência de Deus só poderia ser bem sucedido pressupondo-se a existência de Deus.]  Nos próximos parágrafos não tentarei refutar o ATD diretamente. Em vez disso, eu mostrarei como é possível defender uma conclusão exatamente oposta, qual seja, a de que a lógica, a ciência e a moralidade pressupõem a falsidade da cosmovisão cristã; ou pelo menos a falsidade da interpretação desta cosmovisão subjacente ao ATD. Chamarei este argumento de Argumento Transcendental Para a Inexistência de Deus ou ATID para abreviar.

Se o ATID for um argumento sólido, então, obviamente, o ATD não o é, pois é logicamente impossível que existam dois argumentos sólidos com conclusões contraditórias. Por outro lado, se o ATID não for sólido, não se segue que o ATD o seja. Afinal, ambos os argumentos podem não ser sólidos. Talvez, a lógica, a ciência e a moralidade objetiva sejam possíveis tanto sob uma cosmovisão cristã quanto sob uma não-cristã. Em qualquer caso, a apresentação do ATID oferecerá um desafio indireto ao ATD e obrigará seus defensores a defender sua posição. O ônus de refutar o ATID será deles. A menos que o façam, o ATD está condenado.

Como o ATID funciona? Considere a lógica. A lógica pressupõe que seus princípios sejam necessariamente verdadeiros. Entretanto, segundo a vertente do Cristianismo subjacente ao ATD, Deus criou tudo, incluindo a lógica; ou no mínimo tudo, incluíndo a lógica, depende de Deus. Mas se alguma coisa é criada por ou é dependente de Deus, ela não é necessária –  ela é contingente em Deus. E se os princípios da lógica são contingentes em Deus, eles não são logicamente necessários. Além disso, se os princípios da lógica são contingentes em Deus, Deus poderia altera-los. Portanto, Deus poderia tornar a lei da não-contradição falsa; em outras palavras, Deus poderia arranjar as coisas de maneira que uma proposição e sua negação sejam simultaneamente verdadeiras. Mas isto é absurdo. Como poderia Deus arranjar as coisas de modo que a Nova Zelândia esteja ao sul da China e que a Nova Zelândia não esteja ao sul da China? Assim, deve-se concluir que a lógica não é dependente de Deus, e, na medida em que a cosmovisão cristã assume que a lógica possui esta dependência, ela é falsa.

Considere a ciência. Ela pressupõe a uniformidade da natureza: que as leis naturais regem o mundo e que não ocorrem violações de tais leis. Contudo, o Cristianismo pressupõe que existem milagres nos quais as leis da natureza são violadas. Como a coerência da ciência pressupõe a inexistência de milagres, deve-se além disso presumir que o Cristianismo é falso. Colocando de uma maneira diferente: milagres são, por definição, violações de leis da natureza que podem ser explicados somente pela intervenção divina. A ciência, porém, presume que, na medida em que um evento possui uma explicação, seja lá qual for, ele possui uma explicação científica – uma que não pressupõe Deus[2]. Portanto, a ciência presume que a cosmovisão cristã é falsa.

Considere a moralidade. O tipo de moralidade cristã subjacente ao ATD é alguma versão da Teoria dos Mandamentos Divinos, a idéia de que obrigações morais são dependentes da vontade de Deus. Mas tal concepção é incompatível com a moralidade objetiva. Por um lado, a moralidade de uma ação ou de uma conduta é função da vontade arbitrária de Deus; por exemplo, se Deus decidisse que a crueldade em si fosse boa, então ela o seria. Por outro lado, determinar qual é a vontade de Deus é impossível, uma vez que existem diferentes alegadas revelações de sua vontade (a Bíblia, o Alcorão, o Livro de Mórmon, etc.) e diferentes interpretações do que estas fontes querem dizer; além disso, não existe maneira racional de reconciliar estas diferenças. Portanto, a existência de uma moralidade objetiva pressupõe a falsidade da cosmovisão cristã subjacente ao ATD.

Existem, é claro, maneiras de invalidar as conclusões do ATID. Uma saída é rejeitar a lógica, a ciência e a objetividade da moral. Outro é manter a crença em Deus mas afirmar que a lógica, a ciência e a moralidade não dependem da existência de Deus. Entretanto, a primeira via é auto-destrutiva uma vez que os apologistas cristãos utilizam a lógica para defender sua posição e a segunda maneira presume que o ATD é inválido uma vez que ele assume que a lógica, a ciência e a moralidade não pressupõem a existência de Deus. Finalmente, podem ser levantadas objeções a aspectos particulares do ATID, por exemplo, a afirmação de que não existe maneira racional de reconciliar as diferentes interpretações da Bíblia. Contudo, esta estratégia envolveria uma detalhada defesa do ATD — algo que ainda não foi oferecido.

[1] O primeiro defensor deste argumento no pensamento contemporâneo é o apologista cristão Greg Bahnsen. Para uma intercâmbio de idéias entre Douglas Jones, um discípulo de Bahnsen, e Keith Parsons e eu, veja Douglas Jones, The Futility of Non-Christian Thought, Antithesis, Vol II, Julho/Agosto de 1991, pp. 40-42, Keith Parsons, Is Non-Christian Thought Futile? Antithesis, Vol II Julho/Agosto de 1991, pp. 42-44, Michael Martin, Is a Non-Christian Worldview Futile? Antithesis, Vol II, Julho/Agosto de 1991, pp. 44-46. Veja também a resposta de Jones em Antithesis, Vol II, Julho/Agosto de 1991, pp. 46-47.

[2] Isto é compatível com a idéia de que certos microeventos são indeterminados e, portanto, não possuem nenhuma explicação, científica ou de qualquer outro tipo.

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