Na imagem: Cristãos adeptos da Igreja da Alemanha [Deutsche Christentum] celebrando o "Dia de Lutero", em 1933. Colorido artificialmente |
Autor: Hector Avalos
Tradução: Gilmar Santos, postado originalmente no Rebeldia Metafísica
Texto publicado hoje, dia 27 de Janeiro. Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto
Em sua réplica às acusações dos autores neoateus de que a religião levou a matanças em larga escala, Dinesh D’Souza, o comentarista conservador, assegura-nos que “o nazismo… foi uma filosofia secular e antirreligiosa que, de modo bastante estranho, compartilhou diversos elementos com o comunismo[1].” Desse modo, D’Souza é capaz de responsabilizar o ateísmo na Alemanha Nazista por 10 milhões de mortes, incluindo as de 6 milhões de judeus. De fato, para D’Souza, os regimes ateístas de Joseph Stalin e Mao Zedong ocupam os dois primeiros lugares no ranking da violência ateísta. De um modo geral, D’Souza afirma que estes três grandes regimes ateístas assassinaram cerca de 100 milhões de pessoas[2].
D’Souza exemplifica à perfeição a categoria dos apologistas cristãos cuja melhor resposta aos genocídios cometidos por autoproclamados cristãos é afirmar que os ateus assassinaram ainda mais. Com efeito, D’Souza calcula que “as mortes causadas por regimes cristãos ao longo de um período de 500 anos equivalem a apenas um porcento das mortes causadas por Stalin, Hitler e Mao num intervalo de poucas décadas”.[3] Bruxas e judeus são alguns dos grupos que D’Souza relutantemente admite que podem ter sido assassinados em decorrência da violência cristã.
Já discuti extensamente a falácia de conceber a violência estalinista em termos de ateísmo[4]. A maior parcela da violência estalinista resultou da coletivização forçada, e documentos publicados recentemente mostram a cumplicidade das autoridades clericais com a agenda estalinista.[5] D’Souza não fornece um único documento ou declaração de Stalin mostrando que ele estava coletivizando ou assassinando por razões ateístas.
Além disso, o comunismo, entendido como um sistema de propriedade coletivizada, é uma noção bíblica já encontrada em Atos 4:32-37. Esse sistema comunista cristão também resultou no assassinato de um casal (Atos 5:1-11) que quebrou sua promessa de renunciar à suas posses. Portanto, o princípio de matar os que não se resignassem à coletivização de suas propriedades é bíblico. A defesa de que o motivo pelo qual Ananias e Safira foram mortos foi simplesmente mentir sobre a entrega de suas posses negligencia a brutalidade do fato de que o valor da vida foi colocado abaixo do valor da renúncia às próprias posses. Pois em vez de apenas bani-los da comunidade, eles foram mortos. Stalin ou Mao provavelmente teriam feito a mesma coisa. Como o comunismo é defendido por alguns autores bíblicos, os assassinatos maoístas e estalinistas não podem ser atribuídos ao ateísmo sem mais nem menos, na medida em que a coletivização forçada pode ser letal tanto em sua forma ateísta como na cristã. (Nota do tradutor: não somente isso, como mesmo intérpretes modernos da doutrina cristã, como o influente apologista inglês C.S. Lewis, reconhecem que no aspecto econômico, uma sociedade construída sob princípios cristãos “seria o que se chama hoje em dia ‘de esquerda'(…) sua vida econômica seria bastante socialista“. Para maiores detalhes vejam o capítulo 3 do terceiro livro de Cristianismo Puro e Simples, Conduta Cristã – Moralidade Social)
Além disso, D’Souza não possui a competência necessária para avaliar as alegações de violência maoísta porque tal tarefa requer um treinamento extensivo na língua e nos documentos chineses para averiguar a acurácia das informações fornecidas pelas fontes inglesas. Como eu também careço de especialização no idioma e na cultura chinesa para avaliar a violência maoísta, não abordarei o maoísmo aqui. O que sabemos é que D’Souza não apresenta uma única citação de Mao ou mesmo de algum documento chinês traduzido para respaldar suas asserções de que Mao assassinou por causa do ateísmo.
Em todo caso, este artigo analisará em grande profundidade o argumento de que as mortes causadas por Hitler deveriam ser atribuídas a algum tipo de ateísmo darwinista, algo enfaticamente defendido por Richard Weikart em seu livro From Darwin to Hitler (2004)[6]. O livro de Weikart é uma das fontes para os pronunciamentos de D’Souza. Na verdade, demonstrarei que:
- O Holocausto nazista, em vez de resultar de algum tipo de ateísmo darwinista, é efetivamente a mais trágica consequência de uma longa história de racismo e antijudaísmo cristãos.
- O Nazismo assassinou pessoas por sua etnicidade ou religião seguindo princípios enunciados na Bíblia.
Além disso, mostrarei que diversas alegações de D’Souza apoiam-se em péssimas técnicas de pesquisa histórica e num conhecimento superficial do anti-judaísmo cristão.
Princípios Éticos e Números
De acordo com a Convenção das Nações Unidas contra o Genocídio (também chamada de Primeira Convenção de Genebra), o termo genocídio descreve “atos cometidos com o objetivo de destruir, parcial ou totalmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”[7]. Não existe nenhuma distinção ética entre assassinar um grupo religioso ou um grupo étnico. Não existe nenhuma distinção ética entre assassinar um grupo racial ou um grupo nacional. Todos são igualmente proibidos pelos padrões das Nações Unidas. Isto é importante porque D’Souza muitas vezes tenta atenuar a violência religiosa alegando, geralmente sem respaldo documental, que alguns atos atribuídos à violência religiosa são na verdade casos de violência étnica ou racial.
Ademais, D’Souza muitas vezes deixa inexplicado o que há nos grupos étnicos antagônicos que os torna tão mutuamente hostis. D’Souza falha em ver que a etnicidade pode ser criada e/ou exacerbada por diferenças religiosas. Por exemplo, segundo os relatos bíblicos, a criação da etnia hebreia remonta à ordem para que Abraão desse início à sua própria linhagem separada (Gênesis 12:1-7), embora ele e sua família, a esta altura, não fossem “etnicamente” distintos do resto de sua tribo[8]. Além disso, a linhagem de Abraão diferenciou-se pela adesão ao monoteísmo e pelo adoção de algumas práticas religiosas obrigatórias (por exemplo, a endogamia, a circuncisão) que os apartou de seus vizinhos (veja em Gênesis 17:12, 24:3-4). Um fenômeno similar ocorreu entre cristãos e judeus. O conflito inicial era entre judeus que aceitaram Jesus como o Messias e judeus que não o fizeram (veja em João 5:18, Atos 17:2-5, Gálatas 2:11-16).
Com efeito, tais judeus não diferiam “etnicamente” uns dos outros. Não obstante seja claro que alguns personagens no Novo Testamento (NT) consideravam-se judeus e cristãos, ao fim, os “judeus” passaram a ser os que não aceitaram Jesus como o Cristo, conservando a religião tradicional de seus ancestrais. Mais tarde, a Igreja Católica reforçou a separação da identidade religiosa dos judeus através de leis matrimoniais, restrições profissionais, segregação em guetos e utilização obrigatória de trajes característicos, o que os tornou alvos ainda mais distintos e ainda mais facilmente identificáveis[9]. Todavia, foi algo percebido como um antagonismo judaico à figura de Cristo o que muitas vezes foi apresentado oficialmente como a razão primária para tais ações. Assim, quando o Papa Paulo IV publicou em 1555 sua Cum Nimis Absurdum, que estabeleceu a segregação dos judeus num gueto, sua justificativa introdutória foi que os judeus “por sua própria culpa entregaram-se à eterna servidão”[10]. Portanto, não é possível dissociar religião e etnicidade tão facilmente quando D’Souza tenta fazer.
D’Souza também ressalta mais os números do que o princípio ético de que é errado assassinar grupos de seres humanos em virtude de sua raça, etnicidade, nacionalidade ou religião. Mas se, como D’Souza aparentemente pensa, o genocídio é sempre condenável, então os números não importam tanto quanto o princípio. Se D’Souza não pensa que o genocídio é sempre condenável, então ele não é menos relativista moral do que os ateus, e agora teríamos somente suas razões arbitrárias para justifica-lo.
Portanto, suponhamos que dois grupos genocidas, X e Y, estivessem seguindo o mesmo princípio de assassinar todos os membros de algum grupo que eles escolheram por razões étnicas ou religiosas. Chamaremos as vítimas do grupo X de Alvo 1 e as vítimas do grupo Y de Alvo 2. Contudo, suponhamos também que o Alvo 1 seja uma tribo com apenas 1000 pessoas, enquanto o Alvo 2 seja um grupo religioso composto por um milhão de pessoas. Em forma de tabela:
Agora, a repreensibilidade do princípio do genocídio mudaria se o grupo X assassina apenas mil indivíduos ao passo que o grupo Y assassina um milhão? É claro que não, porque podemos supor razoavelmente que se o Alvo 1 possuísse um milhão de membros, então o Grupo X poderia ter assassinado um milhão de indivíduos.
De modo que um truque de ilusionismo está sendo empregado por D’Souza em seu apelo aos números brutos, na medida em que ele imagina que o Cristianismo é de alguma maneira superior simplesmente porque seus representantes tencionaram eliminar grupos menos populosos. Considere que o próprio D’Souza admite que a caça às bruxas cristã assassinou cerca de 100 000 pessoas na Europa[11]. Mas se o princípio de assassinar bruxas continuasse válido, então 10 milhões de bruxas poderiam ter sido assassinadas houvessem os caçadores de bruxas encontrado e matado esse contingente.
O fato de termos somente 100 000 vítimas da caça às bruxas significa apenas que o grupo alvo foi menor, mas não que o objetivo de extermínio total foi diferente. Assim, devemos julgar a moralidade do genocídio não somente por números absolutos de pessoas assassinadas como também pela parcela do grupo alvo marcada para morrer. Como a meta de extermínio presumida para ambos, Hitler ou para os inquisidores cristãos, é de 100%, a repreensibilidade moral de Hitler e dos inquisidores é a mesma. Seus atos genocidas também seriam igualmente condenados pelo padrão das Nações Unidas.
Portanto, a única coisa que D’Souza conseguiu foi mostrar que o Cristianismo não é moralmente superior em seus princípios de genocídio. Cristãos podem e tem procurado assassinar grupos inteiros de pessoas. É um mero acidente histórico que os saldos dos regimes ateístas sejam maiores em comparação com os regimes cristãos, mesmo se concedermos a tese errônea de que Hitler representou um regime ateísta. Caso contrário, o argumento de D’souza é semelhante a afirmar que a Hitler deveria ser dado o crédito por assassinar apenas 6 milhões de judeus porque este contingente foi o máximo que ele conseguiu arrebanhar.
Nazismo e Antijudaísmo Cristão
Ao contrário da polêmica tese defendida por D’Souza de que o nazismo é uma “filosofia antirreligiosa”, o nazismo na verdade é um capítulo da longa história do anti-judaísmo cristão. O nazismo não representa um desvio radical das atitudes dos cristãos tradicionais em relação aos judeus. Isto é reconhecido pelo historiador católico Jose M. Sanchez: “Há poucas dúvidas de que o Holocausto remonta à milenar hostilidade dos cristãos contra os judeus“[12].
O fato de que o nazismo é simplesmente uma forma modernizada de antijudaísmo cristão é comprovado pelo quão estreitamente o plano nazista para os judeus se assemelha ao do fundador do Cristianismo Protestante, Martinho Lutero (1483-1546). A fim de compreender esta conexão, apresento um resumo extraído do plano de sete pontos de Lutero, publicado em 1543 em seu tratado, Dos judeus e suas mentiras (Nota do Tradutor: versões digitalizadas de uma tradução deste opúsculo são largamente disponibilizadas em sites antissemitas e neonazistas. Por razões óbvias não colocarei nenhum link aqui demonstrando isso, mas uma busca no Google confirma facilmente o que afirmo):
"Primeiro, recomendo atear fogo às suas sinagogas e escolas e cobrir com imundície tudo o que não for reduzido à cinzas, de modo que nenhum homem veja novamente uma pedra ou uma brasa deles.
Isto deve ser feito em honra de nosso Senhor e da Cristandade, de modo que Deus possa ver que somos cristãos, e não perdoamos ou toleramos tais ofensas e blasfêmias contra seu filho e seus seguidores…
Segundo, eu recomendo que suas casas também sejam destruídas…
Terceiro, recomendo que todos os seus livros de oração e escritos talmúdicos, em que tais idolatrias, mentiras, blasfêmias e indecências são ensinadas, lhes sejam tomados.
Quarto, eu recomendo que seus rabinos sejam proibidos de ensinar doravante sob pena de perder a vida…
Quinto, eu recomendo que o salvo-conduto nas estradas seja abolido completamente para os judeus.
Sexto, eu recomendo que a usura lhes seja proibida, e que todo o seu dinheiro e todas os seus tesouros em ouro e prata sejam confiscados e colocados sob custódia…
Sétimo, recomendo colocar um mangual, um machado, uma enxada, uma pá, uma roca ou um eixo nas mãos de todos os jovens judeus e judias e deixa-los ganhar seu pão com suor de seu rosto, como foi imposto aos filhos de Adão (Gen. 3:19)[13] "
Cada um dos ítems no plano de Lutero foi implementado pela política nazista. Por exemplo, durante a Kristallnacht, o horrível surto de violência antijudaica de 1938, os lares, as lojas e as sinagogas judaicas foram incendiados ou saqueados, exatamente como prescrito pelos dois primeiros ítems do plano de Lutero. Além disso, coincidência ou não, os eventos da Kristallnacht desenrolaram-se durante o aniversário de Lutero, no dia 10 de novembro. (Nota do Tradutor: acredito que tenha sido uma irônica coincidência. O pretexto para a Kristallnacht foi o assassinato de um funcionário da embaixada alemã em Paris por um judeu indignado com a situação calamitosa em que sua família se encontrava na fronteira com a Polônia após ser expulsa da Alemanha.) Obras de literatura de autores de ascendência judaica foram queimadas pelos nazistas, exatamente como recomendado no terceiro parágrafo do plano de Lutero. Os rabinos foram proibidos de ensinar, como ordenado pelo quarto ítem de Lutero. As prisões e deportações dos judeus para campos de concentração são consistentes com o quinto conselho de Lutero. Propriedades judaicas, incluindo obras de arte, foram confiscadas pelos nazistas, à semelhança da sexta recomendação de Lutero. O sétimo ponto de Lutero possui uma correspondência com os campos de trabalho forçado, com seu infame slogan Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”).
Os planos são tão parecidos que mesmo Martin H. Bertram, um intelectual luterano e o tradutor do panfleto anti-judaico de Lutero, declara: “É impossível publicar o tratado de Lutero hoje, entretanto, sem notar o quanto suas propostas foram similares às ações do regime nacional-socialista na Alemanha nas décadas de 1930 e 1940[14] E quando se considera a imagem que Hitler tinha de Lutero, o que este representava para ele, tudo o que precisamos é consultar o Mein Kampf: “Ao lado de Frederico, o Grande está Martinho Lutero, assim como Richard Wagner.”[15]
Os cristãos católicos possuem uma história ainda mais longa de antijudaísmo. O décimo-sexto canône do Concílio de Elvira (ca. 306), por exemplo, proibiu o casamento entre judeus e cristãos[16]. De modo que as leis de Nuremberg nazistas, que proibiram o casamento entre alemães e judeus, são uma mera extensão de uma tradição cristã, não uma ruptura radical, como D’Souza quer nos fazer crer. Não obstante o antijudaísmo remontar ao NT, é na Idade Média que começamos a testemunhar alguns dos mais brutais e sistemáticos ataques cristãos contra os judeus[17]. Em parte, a codificação do cânone legal católico foi responsável por uma política mais uniforme em relação aos judeus[18]. E apesar das migalhas de tolerância mostradas esparsamente no cânone legal, a realidade é que os judeus foram expulsos da Inglaterra em 1290 e da França em 1306. Por volta de 1492, como se sabe, a Espanha também expulsou os judeus.
De qualquer maneira, a Primeira Cruzada, que tencionava libertar a Terra Santa do domínio muçulmano, deu origem a uma nova onda de violência sistemática contra os judeus. A primeira cruzada foi proclamada em 1095, e os primeiros contingentes começaram sua viagem em direção ao leste em 1096. Estes contingentes, compostos majoritariamente por leigos, foram responsáveis pela maior parte da violência antijudaica. Hordas de “cruzados” tomaram de assalto cidades como Colônia, Mainz e Worms, e deixaram cerca de 3 mil judeus mortos[19]. Vários dos judeus capturados nestes pogroms recusaram-se a se converter ao Cristianismo. Segundo os relatos judaicos, a seguinte justificativa para o martírio foi proferida:
"Depois de tudo, não há dúvidas dos caminhos do Santíssimo, louvado seja… Que nos deu Sua Torá e nos ordenou que permitíssemos que fôssemos mortos e chacinados em testemunho da Unicidade de Seu Santo Nome. Felizes estamos se satisfazemos sua vontade e feliz é aquele que tomba e morre atestando a Unicidade de Seu Nome.[20]"
Estes judeus, vitimados pelos cristãos, certamente viram o ódio que lhes era dirigido como enraizado na religião. A defesa de D’Souza de que pelo menos os judeus medievais poderiam ter se convertido, ao contrário da situação na Alemanha Nazista, fracassa pelos padrões das Nações Unidas[21] É proibido exterminar qualquer grupo baseado em sua etnicidade ou religião, de modo que a oportunidade de se converter não faz a menor diferença.
Será que D’Souza pensa que se o número de judeus disponíveis para o abate naquelas cidades alemãs medievais tivesse sido maior, então menos judeus teriam sido mortos? Por um lado, as autoridades clericais de fato denunciaram estes pogroms. Por outro lado, os leigos podem ter agido da maneira como o fizeram por causa de palavras como as do Papa Inocente III, que no dia 9 de Outubro de 1208 expediu ao rei da França Philip II Augustus o seguinte édito a respeito dos hereges e dos judeus:
"A fim de que a Santa Cidade de Deus, disposta como uma assustadora frente de batalha, possa prosseguir contra seus mais cruéis inimigos, exterminar [ad exterminandum] os seguidores de heresias abomináveis, que como um verme ou uma úlcera, infectaram a província inteira, formamos guarnições de soldados cristãos a serem convocados juntos…[22]"
Observe que, mesmo que nem sempre obedecidas literalmente, a ideia de extermínio de grupos de pessoas (hereges, judeus) já está lá, bem como o uso da linguagem genocida medicalizada (“úlcera… infectaram”) compartilhada com o nazismo[23].
O fato de que Hitler via o que ele estava fazendo como uma continuação da política católica é confirmado por uma conversa que ele teve em 26 de Abril de 1933, com Hermann Wilhelm Berning, bispo de Osnabriick, Alemanha. De acordo com um relatório registrado nos Documentos sobre a Política Externa Alemã:
"[Hitler] então trouxe à baila a questão judaica. Justificando sua hostilidade para com os judeus, ele referiu-se à Igreja Católica, que igualmente sempre considerou os judeus como indesejáveis e que em virtude dos perigos morais envolvidos proibiu os cristãos de trabalhar para os judeus. Por estas mesmas razões a Igreja baniu os judeus para o gueto. Ele via os judeus como nada além de inimigos perniciosos do Estado e da Igreja e, por essa razão, quis exclui-los cada vez mais, sobretudo dos cargos públicos e da vida acadêmica[24]."
Conforme sumarizado pelo renomado historiador do Holocausto Guenter Lewy, “Hitler simplesmente estava fazendo o que a Igreja havia feito por 1500 anos.”[25] Na verdade, Hitler simplesmente dispunha de tecnologias e logísticas muito superiores para fazer o que os cristãos medievais quiseram fazer aos judeus. Também haviam muito mais judeus vivendo na Alemanha na época de Hitler. Portanto, D’Souza deveria estar contando os acréscimos nas populações-alvo, não apenas as populações como um todo, para avaliar a proporcionalidade da violência ateísta e religiosa.
O Quão Religioso Foi o Antijudaísmo Nazista?
D’Souza levanta a polêmica tese de que o nazismo foi uma “filosofia antirreligiosa”, mas oferece escassas evidências incontestáveis para esta alegação. Se desejamos conhecer motivos, um procedimento razoável é buscar as razões que as pessoas oferecem para o que fazem. Se seguirmos este procedimento, então a seguinte declaração de Hitler no Mein Kampf é bastante relevante:
Por isso hoje acredito que estou agindo em concordância com a vontade do Criador Todo-Poderoso; ao me defender contra o Judeu, estou lutando pela obra do Senhor.[26]
Mas D’Souza descarta a declaração de Hitler como evidência de que Hitler realmente pretendeu dizer o que disse. Em vez disso, D’Souza sugere que uma fonte melhor para os pensamentos de Hitler sobre a religião é Allan Bullock, autor de um livro chamado Hitler e Stalin: Vidas Paralelas, de 1993. Conforme D’Souza expressa em suas palavras: “‘Desde a mais tenra idade’, o historiador Allan Bullock escreve, ‘Hitler não dedicou tempo algum ao catecismo católico, considerando-o uma religião adequada somente para escravos e detestando sua ética.”[28] Esta é claramente uma tática de esquiva, já que D’Souza não explica porque Bullock sabe o que Hitler pensava melhor do que o próprio Hitler. Em geral, é um procedimento de investigação histórica inferior substituir uma fonte primária (isto é, Hitler) por uma fonte secundária (ou seja, Bullock). Além disso, mesmo se Hitler detestasse os ensinamentos católicos, D’Souza confunde ateísmo com anticatolicismo. E a citação acima não é a única em que Hitler invoca Deus, a religião ou o Cristianismo para explicar suas idéias políticas no Mein Kampf. Hitler também declarou: “Pois a vontade de Deus deu aos homens sua forma, sua essência e suas habilidades. Qualquer um que destrua Sua obra está declarando guerra à criação do Senhor, a vontade divina.”[29] No encontro com Berning, Hitler insistiu que “nem uma vida pessoal nem uma nação poderia ser construída sem o Cristianismo.”[30]
Outra tentativa de evitar as implicações óbvias das declarações de Hitler é o apelo de D’Souza ao aspecto propagandístico do Mein Kampf. D’Souza alega que “o próprio Hitler diz no Mein Kampf que suas declarações públicas deveriam ser interpretadas como mera propaganda que não guarda a menor relação com a verdade, sendo antes planejadas para exaltar as massas.”[31] D’Souza não cita um trecho direto de Hitler para esta alegação e apenas nos remete às páginas 177-85 do Mein Kampf, o que mais uma vez reflete um péssimo trabalho de pesquisa histórica. D’Souza parece não notar que esta generalização grosseira sobre o Mein Kampf não guardar “nenhuma relação com a verdade” cria um caso de incoerência autorreferencial. Se a propaganda de Hitler sempre esconde a verdade, então segue-se que o próprio enunciado sobre como ele estava usando a propaganda deve ser falso. E Hitler não acreditou realmente que os judeus são malignos porque o que ele diz no Mein Kampf não possui relação alguma com a verdade? Em vez disso, um procedimento histórico superior é interpretar literalmente os enunciados de um autor sobre suas próprias crenças a menos que o contrário seja provado. Nada do que Hitler disse desmente que ele acreditou estar fazendo a vontade de Deus.
Além disso, D’Souza deixa inexplicado por que Hitler teria pensado que sua retórica antijudaica poderia comover as massas a menos que as massas fossem receptivas a uma mensagem antijudaica. Isto é importante porque as massas das quais D’Souza fala se autoidentificavam majoritariamente como cristãs. Por exemplo, um relatório nazista indica que por volta de 1938, 51,4% dos membros da SS foram identificados como protestantes, 22,7% como católicos, e 25,7% como “crentes em Deus” (Gottglaubigen).[32] Como o antijudaísmo não encontra-se associado às obras do próprio Darwin, trabalhar tendo como pano de fundo uma história de antijudaísmo cristão seria muito mais efetivo no convencimento das massas cristãs.
Cristianismo Positivo
Outro aspecto do nazismo que D’Souza descarta sem muita investigação é a ideia nazista do Cristianismo Positivo. A primeira ocorrência do termo remonta ao ponto 24 do Programa do Partido Nazista de 1924, que diz:
"O Partido enquanto tal reflete o ponto de vista de um Cristianismo Positivo não limitado confessionalmente a qualquer denominação específica. Ele combate o espírito materialista judaico.[33]"
Mais uma vez, o antijudaísmo foi um de seus principais pilares, o mero resultado de uma longa história de antijudaísmo cristão. Nesse sentido, mais uma vez, o nazismo não é um desvio radical do Cristianismo historicamente ortodoxo.
Quem ler O Mito do Século XX, um tratado sobre o nazismo escrito por Alfred Rosenberg, a quem é atribuída a autoria do Programa do Partido de 1920, entenderá que ele concebia o Cristianismo Positivo como uma restauração dos ensinamentos puros e originais de Cristo.[34] De fato, Rosenberg nos diz que a vida de Cristo é o que deveria ser siginificativo para os alemães.[35] Rosenberg repudiou a idéia do sacrifício de Cristo como uma corrupção judaica, e via Jesus como uma figura cuja verdadeira obra, o amor à própria raça, foi distorcida pela cristandade organizada num amor universal, em vez de um amor restrito ao grupo racial a que se pertence (sobretudo em sua interpretação de Levítico 19:18 e 25:17).
Esta é a razão pela qual Rosenberg o denominou “Cristianismo Positivo” (positive Christentum), que ele contrapôs explicitamente à forma corrupta representada pelo “clero etrusco-asiático” (etrusco-asiatische… Priesterherrschaft), que abraangia o Catolicismo Romano[36]. Assim, para o Cristianismo Positivo, a mera palavra “Cristianismo” muitas vezes significou a forma judaizada e clericalmente organizada vista no Catolicismo Romano, que diferia da originalmente proposta por Jesus. Opor-se ao “Cristianismo”, portanto, não significa opor-se à religião de Cristo ou opor-se à religião.
De fato, Der Mythus é repleto de citações bíblicas. Com algumas das interpretações de Rosenberg da Bíblia decerto até mesmo eruditos judeus poderiam concordar. Por exemplo, ele observa que Levítico 25:17, que declara “Ninguém prejudique o seu próximo”, refere-se ao próximo hebreu, e não a todos os demais[37]. Mas esta interpretação de “teu próximo” é consistente com a interpretação de Harry M. Orlinsky, o grande estudioso do cânone judaico[38]. Rosenberg também pensou que o Evangelho de João foi o que melhor preservou alguns dos ensinamentos de Jesus. Assim ele o comenta: “O Evangelho de João, que ainda é permeado por um espírito aristocrático, combateu a bastardização coletiva, a orientalização e a judaização do Cristianismo”[39]. É no Evangelho de João (8:44) em que o próprio Jesus diz que os judeus são mentirosos filhos do diabo. Esse versículo apareceu bem mais tarde na sinalização de trânsito do regime nazista, ao passo que nenhuma citação de Darwin jamais foi vista nas placas de trânsito nazistas[40]. Este versículo ecoa o título do panfleto de Lutero (Dos judeus e suas mentiras), bem como o longo título que Hitler originalmente propôs para seu livro ([Meus] Quatro anos e meio de luta contra as mentiras… ).
Sim, Rosenberg sincretizou os conceitos cristãos encontrados no NT com mitos germânicos, e mitos de sua própria criação ou adaptação. Mas em que a exegese bíblica e o sincretismo de Rosenberg diferem do que outros autoproclamados cristãos estiveram fazendo ao longo da história? Com efeito, vários estudiosos defendem exatamente que o Cristianismo foi o resultado da combinação de idéias judaicas com outras helenísticas. Ao conceberem a si próprios como restauradores do Cristianismo primitivo, os cristãos positivos não foram menos cristãos do que os primeiros luteranos ou anabatistas. Na verdade, o Cristianismo Positivo possui precursores ilustres dentre os primeiros cristãos que rejeitaram o judaísmo. Estes incluem Marcião (segundo século), o cristão gnóstico que repudiou o Antigo Testamento (AT) por inteiro, e promoveu um cânone consistindo apenas de um Evangelho de Lucas expurgado e algumas das epístolas paulinas. O marcionismo repetiu-se na história cristã, especialmente entre alguns grupos anabatistas e teólogos cristãos (por exemplo, Friedrich Schleiermacher)[41].
Resumindo, se usamos a mesma lógica utilizada por vários teólogos cristãos que reinterpretam radicalmente a Bíblia Hebraica para a prática cristã, poderíamos também argumentar que o Cristianismo Positivo não representa tanto um movimento anticristão quanto representa uma reinterpretação do Cristianismo, um fenômeno constante na história cristã. É por isso que atualmente existem cerca de 25 mil grupos cristãos, alguns dos quais acreditam em coisas radicalmente opostas. Dizer que os marcionitas, os luteranos ou os cristãos positivos não são realmente cristãos é fazer um julgamento teológico mais do que um julgamento histórico.
O que há de tão negativo acerca do Cristianismo Positivo?
Não somente D’Souza exibe uma lastimável compreensão errônea do Cristianismo Positivo, como as principais objeções que ele lança contra ele são extremamente superficiais. Para D’Souza, o Cristianismo Positivo não pode contar como Cristianismo porque ele “obviamente foi uma ruptura radical do entendimento cristão tradicional, e como tal foi condenado pelo Papa Pio XI na época”[42]. Este último caso é suficiente para mostrar os preconceitos teológicos de D’Souza, já que ele assume que o que quer que o Papa Pio XI condene deve representar um falso cristianismo. E naturalmente, a alegação de que um Cristo ariano é uma ruptura radical do entendimento cristão tradicional é uma grande novidade para qualquer um familiarizado com a longa história da arte cristã, onde Cristo é rotineiramente pintado como um branco europeu. De acordo com Epiphanies Monachus (oitavo ou nono século), um monge grego de Constantinopla, Jesus “tinha seis pés de altura, longos e dourados cabelos, e não muito volumosos…”[43]. Então, como um Cristo ariano nazista pode ser uma ruptura radical?[44]
D’Souza também deixa de dizer a seus leitores que antes do Papa Pio XI se distanciar do nazismo em sua famosa encíclica de 1937 (Mit Brennender Sorge/ “Com Ardente Pesar”), esse mesmo Papa assinou, “na época”, em 1933, um pacto com os nazistas, que Hitler inclusive apreciou como um inestimável auxílio para levar adiante sua “batalha contra a judiaria internacional (‘der kampf gegen das internationale judentum‘)”[45]. E observem como D’Souza não questiona se o Papa Pio XI teve motivos políticos em vez de sublimes motivos humanitários para sua reprovação aos nazistas em 1937. D’Souza não indaga se Pio XI realmente pretendeu dizer o que ele disse, como faz quando Hitler afirma estar acatando a vontade de Deus.
No entanto, quando se lê essa encíclica de 1937, o Papa Pio XI admite fazer acordos com a Alemanha Nazista:
"Quando, em 1933, consentimos, venerável Brethren, em abrir negociações por um pacto, que o governo do Reich propôs como base de um programa de muitos anos de colaboração… Estávamos propensos pela vontade, como nos é próprio, de assegurar à Alemanha a liberdade da missão beneficente da Igreja e a salvação das almas sob seus cuidados, bem como pelo desejo sincero de prestar ao povo alemão um serviço essencial para seu desenvolvimento pacífico e prosperidade. Assim, apesar de várias e graves dúvidas e inquietações, decidimos então não recusar nosso assentimento pois foi nosso desejo poupar os devotos da Alemanha, na medida em que fosse humanamente possível, dos julgamentos e dificuldades que eles teriam que enfrentar, dadas as circunstâncias, houvessem as negociações malogrado[46]"
Por que isso não se qualificaria como uma manobra política, já que almeja proteger os interesses de um grupo distinto (católicos)? Por que não podemos também dizer que a hierarquia do Vaticano não pretendeu dizer o que disse em 1937? E será que nenhum dos conselheiros do Papa estava familiarizado com o Mein Kampf, que fora publicado aproximadamente uma década antes de 1933?
Na verdade, Diego Von Bergen, o embaixador do Reich na Santa Sé, relatou que enquanto o Papa estava dizendo uma coisa, Eugenio Pacelli, o cardeal secretário do Vaticano e o homem que se tornaria o Papa Pio XII, prometeu que “relações normais e amistosas… seriam reestabelecidas o mais cedo possível” entre o Vaticano e os nazistas após essa encíclica[47]. De fato, por volta de 1939, o arcebispo Cesare Orsenigo, o núncio para Berlim, estava atarefado abrindo uma recepção de gala para o quinquagésimo aniversário de Hitler[48]. Isso encerra a questão do suposto repúdio da Igreja Católica ao regime nazista.
Caso contrário, tudo depende de se alguém considera a missão da Igreja Católica como digna de tal compromisso, e isso é um julgamento teológico. Se Hitler acreditava ser a vontade de Deus que ele matasse os judeus, não há como averiguar se a inspiração para essa tarefa foi menos divina do que a que levou o Papa Inocente III a manifestar seu desejo de exterminar os judeus e outros hereges na Idade Média. Caso contrário, D’Souza precisa explicar por que o Papa Inocente III estaria certo em dizer que Deus realmente quis que ele exterminasse os judeus ou os hereges na Idade Média, mas este não seria o propósito de Deus para a vida de Hitler no século XX.
O Quão Antirreligioso Foi Hitler?
Equivocar-se sobre a diferença entre o Cristianismo Positivo e o resto do Cristianismo é o que tem levado D’Souza e outros a transformar quaisquer das supostas concepções anticristãs de Hitler em concepções antirreligiosas. Há um problema lógico, obviamente, com a afirmação de que ser anticristão ou ser anticatólico significa ser antirreligioso. A religião abraange muito mais do que o Cristianismo ou o Catolicismo.
Mais substancialmente, pois são uma parcela significativa da evidência em que se baseia, D’Souza apela às Conversações Íntimas de Hitler, que supostamente registram os mais recônditos pensamentos do Führer. Entretanto, a confiabilidade desta fonte para determinar as opiniões de Hitler é bastante questionável. Existem quatro versões principais das Conversaçõs Íntimas, aqui nomeadas de acordo com os principais editores ou tradutores e os anos de publicação: (1) Henry Picker (alemã, 1951, 1963, 1976); (2) Francis Genoud (apenas tradução francesa, 1952); (3) H. R. Trevor-Roper (inglesa 1953, 1973, 2000); e (4) Werner Jochmann (alemã, 1980). Estes registros geralmente são organizado internamente pela data em que Hitler manteve a conversa.
Os problemas com as Conversações Íntimas foram minuciosamente estudados por Richard Carrier[49]. Do meu ponto de vista, na qualidade de historiador acadêmico, existem pelo menos três problemas com a utilização desta fonte; (1) não existem originais autógrafos, do próprio punho de Hitler, desta fonte. Não temos fitas de áudio para verificar as transcrições. O que temos são cópias célebres que muitas vezes foram filtradas através de Martin Borman, auxiliar de Hitler. O fato de estas versões concordarem suficientemente para sugerir uma fonte comum não necessariamente prova que esta fonte comum tenha sido o próprio Hitler. (2) As versões às vezes são discrepantes. Algumas passagens estão ausentes na edição de Trevor Roper em relação à edição de Picker. De modo que é difícil dizer o que vem de Hitler e o que vem dos editores. (3) Trevor-Roper autenticou os Diários de Hitler, apesar de estes mais tarde terem sido desmascarados como uma fraude[50]. Genoud também é um personagem de reputação duvidosa que pode ter estado envolvido em outras falsificações. E como Carrier tem mostrado, ambas as edições de Genoud e Trevor-Roper muitas vezes traduzem com erros grotescos o original alemão.
Além disso, o principal mediador em todas as versões conhecidas das Conversações Íntimas é o secretário pessoal de Hitler, Martin Bormann, conhecido por seus pontos de vista anticristãos[51]. De modo que às vezes podemos estar lendo os pensamentos de Bormann em vez de os de Hitler[52].
Também sabemos, a partir de outras fontes, que Hitler discordou de Bormann e também discordou de suas próprias opiniões expressas nas Conversações Íntimas. Por exemplo, Albert Speer, que foi o arquiteto pessoal de Hitler, disse:
"Mesmo após 1942 Hitler prosseguiu sustentando que considerava a Igreja indispensável na vida política. Numa dessas conversas à hora do chá, ele afirmou que ficaria feliz se algum dia um eclesiástico renomado se revelasse adequado para liderar uma das igrejas – ou, se possível, ambas, a católica e a protestante, reunidas.[53]"
Speer também relata casos em que Hitler censurou ações anticristãs cometidas por seus subordinados[54].
Assim, se utilizarmos somente as fontes mais confiáveis, D’Souza definitivamente não demonstra seu caso. D’Souza não cita uma única passagem do Mein Kampf, uma fonte incontestavelmente atribuída a Hitler, em que este diz que seus motivos foram ateístas. Todavia, podemos encontrar uma série de passagens do Mein Kampf em que Hitler, não menos do que Martinho Lutero, reivindica estar realizando a vontade de Deus.
Mas mesmo se considerarmos as Conversações Intímas uma fonte confiável, a antirreligiosidade de Hitler não é tão evidente quanto D’Souza afirma porque D’Souza confunde anticristianismo com ateísmo. Das citações que D’Souza fornece, a única que melhor contribuiria para seu caso é: “através do campesinato seremos capazes de destruir o Cristianismo.” Mas D’Souza não fornece o número da página das Conversações Íntimas, e sua nota de rodapé correspondente apenas remete a “Conversações Íntimas de Hitler (New York: Enigma Books, 2000)”, que é uma edição associada a Hugh Trevor-Report[56]. Na melhor das hipóteses, o que temos aqui é um trabalho de documentação bastante desleixado, e nos leva a indagar se D’Souza está mesmo lendo as Conversações Íntimas em primeira mão.
Além disso, D’Souza não revela a frase completa, que na verdade encontra-se nos Pronunciamentos de Hitler, um livro historicamente desacreditado da autoria de Hermann Rauschning: “Mas é através do campesinato que realmente seremos capazes de destruir o Cristianismo porque existe entre eles uma verdadeira religião enraizada no sangue e na natureza.” Assim, em sua versão integral, o alegado objetivo de Hitler é uma religião melhor (“verdadeira religião”), não religião nenhuma.
Houvesse D’Souza lido as diversas versões das Conversações Íntimas cuidadosamente, ele também teria encontrado muita coisa que contradiz sua afirmação de que Hitler foi antirreligioso. Por exemplo, numa conversa referida a 14 de Outubro de 1941 (edição de Trevor Roper) Hitler comenta:
"Um homem educado preserva o sentido para os mistérios da natureza e ajoelha-se diante do desconhecido. Um homem inculto, por outro lado, corre o risco de sucumbir ao ateísmo (que é um retorno à animalidade)… [58]"
Hitler acrescenta:
"Pode-se perguntar se o desaparecimento do Cristianismo acarretaria o desaparecimento da crença em Deus. Isso não seria desejável. A idéia de uma divindade confere à maioria dos homens a oportunidade de concretizar o sentimento que eles possuem da existência de realidades sobrenaturais. Por que deveríamos destruir este maravilhoso poder que eles possuem de encarnar o sentimento para o divino que há em seu interior?[59]"
Assim, mesmo aqui Hitler distingue entre não acreditar no Cristianismo e não acreditar em Deus. Na verdade, no original alemão das Conversações Íntimas, Hitler manifesta sua esperança de vida eterna no paraíso e seu real desprezo por aqueles que escarnecem da providência divina, declarando em vez disso que ele pensa ser possível que Deus o tenha escolhido, e que é nossa crença num Criador que nos distingue dos animais.[60]
E é nas Conversações Íntimas que Hitler distingue claramente os ensinamentos originais de Cristo da forma corrupta que se tornou conhecida como “Cristianismo”. Ele diz (em 21 de Outubro de 1941) que:
"Originalmente, o Cristianismo era meramente uma encarnação do Bolchevismo, o destruidor. Não obstante, o Galileu, que mais tarde foi chamado o Cristo, pretendeu algo bastante diferente. Ele deve ser considerado como um líder popular que assumiu Sua posição contra a judiaria.[61]"
Em qualquer caso, as ações de Hitler contra quaisquer igrejas não são necessariamente mais anticristãs ou antirreligiosas do que a destruição pelos protestantes de igrejas católicas, ou a destruição pelos católicos dos templos protestantes. Por exemplo, o Rei Henrique VIII (1491-1547), que deu ínicio à Reforma Inglesa, não via a si próprio como anticristão ou antirreligioso quando demoliu os monastérios católicos. Reis cristãos muitas vezes mataram clérigos e perseguiram igrejas que discordavam deles[62]. O que estamos vendo no nazismo é uma guerra sectária ou uma guerra intrarreligiosa, que não deveria ser confundida com antirreligiosidade [63].
O Quão Darwinista foi o Nazismo?
Apesar das esmagadoras evidências apontando que o nazismo é uma continuação do antijudaísmo cristão, D’Souza nos assegura que por trás do nazismo o que realmente está é o darwinismo. Para suas evidências, D’Souza nos remete ao trabalho de Richard Weikart, como a seguir:
"Se o nazismo representou a culminância de qualquer coisa, foi da ideologia do final do século 19 e início do século 20 do darwinismo social. Como o historiador Richard Weikart documenta, ambos Hitler e Himmler eram admiradores de Darwin e em várias ocasiões falaram de seu papel como o de descobridor de uma “lei da natureza” que garantiria “a eliminação dos incapazes”. Weikart… conclui que embora o darwinismo não seja uma explicação intelectual “suficiente” para o nazismo, é uma explicação necessária. Sem o darwinismo o nazismo não poderia ter existido.[64]"
Como nos casos anteriores, D’Souza aparenta não possuir o treinamento requerido para avaliar e julgar as alegações de Weikart. Já ofereci uma série de longas críticas a Weikart, mas aqui eu resumirei alguns dos problemas com a utilização do livro de Weikart[65].
Primeiro, a própria noção de que o darwinismo foi necessário para o nazismo é desmentida pelo plano de Lutero para os judeus de 1543. Por volta de 1543 era possível levar a cabo com êxito um programa que até os especialistas na obra de Lutero reconhecem ser semelhante ao nazismo, e não havia Darwin algum então. Weikart se esquece completamente de Lutero, e raramente menciona a longa história de antijudaísmo cristão que certamente seria mais importante do que o darwinismo. A maioria dos alemães não era tão familiarizada com as obras de Darwin como eram com a Bíblia ou com as tradições antijudaicas de personagens da história alemã como Lutero.
D’Souza nunca oferece qualquer citação direta para mostrar que Hitler foi um admirador de Darwin. Na verdade, D’Souza aparenta ignorar as exatas visões de Weikart sobre as referências de Hitler a Darwin. Weikart foi citado como dizendo:
"É verdade que Hitler quase nunca mencionou o nome de Darwin (a única menção direta a Darwin que fui capaz de encontrar é um relato por um colega Wagener).[66]"
No entanto, mesmo o “quase nunca” é enganoso porque Weikart reconhece que a única referência direta a Darwin por Hitler definitivamente não vem de Hitler. Hitler, contudo, menciona e aplaude Lutero no Mein Kampf. Isso por si só nos diz que Hitler atribuiu a Lutero importância suficiente para menciona-lo algumas vezes, ao passo que Darwin não recebeu nenhuma menção.
Além disso, D’Souza e Weikart também ignoram evidências de que o darwinismo foi especificamente banido na Alemanha Nazista, pelo menos em 1935. As evidências derivam desta diretriz numa lista de livros banidos na Alemanha Nazista compilados numa exposição da biblioteca da Universidade do Arizona: “Obras de natureza social e filosófica cujos conteúdos lidam com o Iluminismo científico do Monismo e do Darwinismo primitivo (Häckel)”.[67]
O Darwinismo de Weikart
Um problema decisivo com a tese de Weikart é que ele começa com esta definição demasiado restritiva de “Darwinismo”:
"Ao utilizar o termo darwinismo neste estudo, refiro-me à teoria da evolução pela seleção natural como exposta por Darwin em A Origem das Espécies.[68]"
É intrigante a razão pela qual Weikart restringe sua definição de darwinismo apenas ao que é encontrado em A origem das espécies (1859), sobretudo porque esse livro não diz absolutamente nada sobre evolução humana ou conflitos raciais. Consequentemente, Weikart precisa empreender uma redefinição contínua de “darwinismo” de forma a incluir outras obras de Darwin e quaisquer outras deturpações do darwinismo que ele for capaz de encontrar. Esta falha de Weikart é ainda mais importante porque ele já criticou outros historiadores reconhecidos por não aderirem às definições que propuseram inicialmente. Por exemplo, numa resenha de um livro escrito por Annette Wittkau-Horgby, Weikart comenta, “Wittkau-Horgby, portanto, não adere à definição de materialismo com que começa…”[69] Para evitar constantemente mover o objetivo definicional proposto para o darwinismo, Weikart poderia te-lo definido de modo mais amplo, e dito “… como exposto por Darwin em suas obras”. Uma vez que, para Weikart, interpretações errôneas das teorias de Darwin ainda contam como “darwinismo”, então ele realmente deveria dizer: “…conforme exposto por Darwin em seus livros e em diversas interpretações de sua obra, sejam esta interpretações corretas ou errôneas.”
A disposição de Weikart em subsumir distorções e deturpações do darwinismo sob o rótulo “darwinismo”, entretanto, não é consistentemente aplicada a outras obras que os nazistas desvirtuaram. Por exemplo, em sua resenha do livro de Richard Steigmann Gall “The Holy Reich“, Weikart comenta: “Vários alemães panteístas utilizaram terminologia religiosa – até mesmo cristã – mas eles muitas vezes a redefiniram.”[70] Assim, quando os escritores nazistas utilizam terminologia panteísta, então eles contam como panteístas, mas quando utilizam terminologia cristã, então eles não são realmente cristãos, mas panteístas. Ao se redefinir o vocabulário cristão, não mais se pode responder pelo Cristianismo, mas redefinir o darwinismo ainda estigmatiza alguém como darwinista. Esta inconsistência lógica é tendenciosa e serve para desviar a responsabilidade do Cristianismo.
Tudo isto é importante porque nenhuma das obras de Darwin, e sobretudo A Origem das Espécies, aborda o antijudaísmo. O antijudaísmo é um componente essencial do nazismo, compartilhado não com as obras de Darwin, mas com o Cristianismo primitivo (por exemplo, João 8:44, Apocalipse 2:9-10). Mais uma vez, mesmo se Darwin possuísse uma agenda antijudaica, a maioria dos alemães não estaria tão familiarizada com as obras de Darwin quanto estavam com a Bíblia.
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