Autor: Quentin Smith
Tradução: Gilmar dos Santos, originalmente postado no Rebeldia Metafísica
A JUSTIFICAÇÃO DA MAIORIA DAS CONCEPÇÕES NATURALISTAS CONTEMPORÂNEAS É INVALIDADA PELOS ARGUMENTOS TEÍSTAS CONTEMPORÂNEOS
Uma formulação mais sistemática desta situação [descrita na primeira parte desta série] pode ser apresentada. Para faze-lo, será necessário primeiro esboçar algumas noções filosóficas sobre justificação e invalidadores. Estas idéias servem a meu propósito de explicar de maneira breve e acessível a situação acadêmica corrente, mas, uma vez que a epistemologia é tanto um campo altamente controverso como um campo conceitualmente preciso e rigorosamente argumentativo, não posso (no mínimo por razões de espaço) engajar-me numa argumentação crítica contra outras teorias epistemológicas. Deixarei a cargo dos epistemólogos que sustentam teorias diferentes da que delinearei resumidamente que “capturem a essência geral daquilo sobre o que estou discorrendo” ou então que traduzam conceitualmente as idéias que eu esboço em suas próprias teorias epistemológicas.
Começo com a noção de justificação. Uma pessoa está justificada em acreditar que p porque a crença dessa pessoa de que p é baseada em sua crença de que q (e se, além disso, algumas outras condições, mencionadas adiante, são satisfeitas). Uma crença de que p é “justificada” num sentido derivativo, isto é, se é a crença de que p mencionada na frase anterior. Uma proposição é justificada num sentido derivativo se ela é a proposição p mencionada nas sentenças precedentes. Argumentos podem ser tratados como proposições complexas, por exemplo, colocando uma conjunção (expressa por “e”) entre as premissas e incluindo a conclusão, assim como a relação de inferência (expressa por “portanto”) na mesma proposição que as premissas combinadas. Muitas vezes utilizo “justifica” num sentido derivativo.
Algumas das outras condições que devem ser satisfeitas para uma pessoa estar justificada em acreditar que p são enunciadas da seguinte maneira. Uma pessoa está justificada em acreditar que p porque a crença dessa pessoa que p é baseada em sua crença em q e 1) q ser verdadeira seria uma razão epistemicamente boa para a pessoa acreditar que p, e 2) qualquer invalidador que seja um motivo adequado para acreditar que q não é uma razão adequada para p ou q não é verdadeira encontra-se cognitivamente inacessível à pessoa.
Um invalidador está cognitivamente inacessível a uma pessoa se o invalidador envolve evidências, teses, argumentos, etc. que a pessoa não é capaz de compreender e acreditar, ou a pessoa está impedida de acreditar nas evidências, teses, argumentos, etc., em decorrência de sua situação. Um caso nítido de tal impedimento seria aquele em que a pessoa está numa situação onde as evidências, teses ou argumentos ainda não foram descobertos em virtude de alguma razão relevantemente legítima, por exemplo, a pessoa precisa de lógica modal para compreender um argumento, a pessoa carece da perícia em lógica e a lógica modal ainda não foi descoberta pelos especialistas em lógica. Uma coisa x está cognitivamente acessível a uma pessoa se a pessoa ocorrentemente ou disposicionalmente acredita em x ou se a pessoa poderia vir a acreditar justificadamente em x com os recursos epistêmicos que lhe estão disponíveis. Recursos epistêmicos incluem informações em livros e artigos, informações de especialistas disponíveis para a pessoa, informações a partir do que a pessoa poderia vir a conhecer através de investigações empíricas (considerando-se as ferramentas relevantes, por exemplo, telescópios) ou raciocínio (considerando-se as ferramentas relevantes, por exemplo, sistemas de lógica, matemática, teoria dos conjuntos).
(Se faz sentido dizer que a crença teísta ou naturalista é uma crença apropriadamente básica, poderíamos reformular nossos argumentos de modo que “crença justificada no naturalismo”, por exemplo, signifique que a crença, uma crença naturalista é uma crença de primeira ordem apropriadamente básica, é uma crença de segunda ordem justificada.)
Será de nosso interesse caracterizar a situação epistêmica corrente da perspectiva de uma pessoa real ou hipotética que sabe que o naturalismo é verdadeiro. Chamarei tal pessoa de “naturalista esclarecido”. O naturalista esclarecido perceberá o estado deplorável (ao menos para ele) que resultou ao se tolerar que, desde o final da década de 1960, uma esfera acadêmica predominantemente secularizada retrocedesse parcialmente ao seu estado dessecularizado tradicional, uma situação tenebrosa resultante das falhas, omissões e negligências dos naturalistas contemporâneos e dos êxitos dos teístas contemporâneos no terreno da filosofia. A situação epistêmica da maioria dos naturalistas contemporâneos pode ser explicada em termos desta perspectiva se definirmos os seguintes símbolos.
N (uma tese). Naturalismo, isto é, a tese de que existem corpos animados ou inanimados, sendo os corpos animados ou organismos inteligentes ou organismos não-inteligentes, mas não existe nada sobrenatural. O exemplo de alguma coisa sobrenatural de maior interesse para os filosófos analíticos contemporâneos é uma mente incorpórea que é o criador originário e/ou mantenedor contínuo do universo e possui os oniatributos descritos na teologia do ser perfeito.[4] Outros exemplos de realidades sobrenaturais hipotéticas que regem ou criam em algum sentido o universo são a mente governante postulada pelos estoicos ou o “Eu Absoluto” postulado pelo jovem Fichte.
Observe que N não implica a inexistência de objetos abstratos, tais como os conjuntos de Quine, os universais de Armonstrong, as leis da natureza de Tooley, ou os valores de Moore ou Butcharov. Tampouco N implica a existência de objetos abstratos. Esta questão é deixada em aberto por N uma vez que meu interesse está em contrastar N (definida em termos de corpos e organismos inteligentes) com o sobrenaturalismo. Se os objetos abstratos existem, incriados e não relacionados de maneira alguma a uma realidade sobrenatural, eles são naturais, mas o naturalista não precisa postular sua existência. Considerando isto, (isto é, que se existem objetos abstratos, eles são naturais) segue-se que o naturalismo e o sobrenaturalismo são as duas únicas ontologias possíveis. Isto exige que admitamos a possibilidade de que as realidades sobrenaturais governantes sejam entendidas politeisticamente ou de outros modos religiosos ou filosóficos que não são mencionados explicitamente em N. (Não obstante, Górgias objetaria que estas não são as duas únicas ontologias possíveis uma vez que ele defende que nada existe. Entretanto, uma vez que isto implica que seu argumento não existe, não precisamos nos dar o trabalho de refuta-lo. De uma maneira mais geral, qualquer teoria que seja clara e explicitamente autocontraditória ou sem sentido não pode ser considerada uma “ontologia possível”, ou pelo menos eu assim estipulo.)
- A (um justificador invalidado). A é o argumento que a ciência contemporânea e a filosofia naturalista são conhecidas por serem provavelmente ou certamente verdadeiras, ainda que A não inclua nenhum contraargumento contra os argumentos contemporâneos para o teísmo.
- DA (um invalidador para o justificador A). DA é um argumento sólido concluindo que o argumento A não é sólido.
- B (um justificador invalidado). B é um argumento concluindo que, a ciência contemporânea e a filosofia naturalista, quando combinadas com uma avaliação dps argumentos teístas contemporâneos para não-N, (onde “não-N” implica que o naturalismo não é verdadeiro) justifica não-N.
- DB (um invalidador para o justificador B). DB é um argumento sólido concluindo que o argumento B não é sólido.
- C (um justificador invicto para N). C é o argumento concluindo que a ciência contemporânea e a filosofia naturalista, quando combinados com uma avaliação dos argumentos teístas contemporâneos para não-N, justifica N.
De acordo com o naturalista esclarecido, a situação problemática em que se encontra pelo menos 99% dos naturalistas contemporâneos está representada nas seguintes colunas. Podemos enunciar de maneira bastante resumida os argumentos em que diferentes filósofos acreditam em termos de nossos símbolos. O estados de crença mencionados são argumentos em cuja solidez as partes relevantes acreditam.
Estado de Crença da Maioria dos Naturalistas Contemporâneos
- A
- A justifica N.
- Portanto, N está justificada.
Invalidador Reconhecido por Naturalistas Esclarecidos
4. DA.
5. DA invalida A.
6. Portanto, A não justifica N.
Estado de Crença da Maioria dos Teístas Contemporâneos
7. B.
8. B justifica não-N.
9. Portanto, não-N está justificada.
Invalidador Reconhecido por Naturalistas Esclarecidos
10. DB.
11. DB invalida B.
12. Portanto, B não justifica não-N.
Como ambos A e B estão invalidados, a maioria dos naturalistas contemporâneos, bem como a maioria dos teístas contemporâneos, mantém crenças invalidadas acerca do valor de verdade do naturalismo. O naturalista esclarecido conhece o argumento complexo C que constitui o invalidador de B e a justificação de N, bem como satisfaz outras condições explicadas mais adiante neste artigo.
Estado de Crença dos Naturalistas Esclarecidos
13. C.
14. C justifca N.
15. Portanto, N está justificada.
Alguns naturalistas acreditam que são naturalistas esclarecidos. Mas se eles realmente são ou não são naturalistas esclarecidos não é a questão que estou abordando neste artigo. Este artigo é uma metafilosofia do naturalismo, não um argumento filosófico concluindo que o naturalismo é verdadeiro. Tais argumentos filosóficos podem ser encontrados em outros artigos e livros. Neste artigo, estou (em parte) caracterizando a situação epistêmica contemporânea acerca do naturalismo da perspectiva de um naturalista esclarecido real ou hipotético.
Como podem os “naturalistas ignorantes”, a maioria dos naturalistas contemporâneos, responderem e permanecerem impassíveis diante desta representação do ponto de vista de um naturalista esclarecido? Eles podem dizer: por que não podem Searle, Davidson, os Churchland e outros naturalistas deixarem que, digamos, Gale, Grünbaum, Fales, Oppy, Le Poidevin, Martin e um punhado de outros saibam como B é invalidado e como C justifica N? Por que não pode a maioria dos naturalistas deixar a cargo dos naturalistas que se especializam em filosofia da religião conhecer o argumento concluindo que a ciência contemporânea e a filosofia naturalista, quando combinadas com os argumentos sobre o teísmo contemporâneo, justificam o naturalismo?
O problema com esta resposta é que Davidson, Searle, os Churchlands e a maioria dos outros naturalistas não saberiam que o naturalismo é verdadeiro uma vez que eles não conhecem o invalidador DB do justificador teísta B para o sobrenaturalismo (ou não-N). Conhecimento é a crença verdadeira irrevogavelmente justificada e a maioria dos naturalistas possuem uma crença verdadeira (presumindo que o naturalismo seja verdadeiro) e uma justificação invalidada A para sua crença. A fim de possuírem uma crença verdadeira irrevogavelmente justificada no naturalismo, e assim o conhecimento de que o naturalismo é verdadeiro, eles precisam conhecer DB, que invalida B, e C, que justifica o naturalismo. (Estritamente falando, conhecer C é suficiente para uma crença verdadeira irrevogavelmente justificada, já que C inclui DB como um componente característico.) Filósofos como Searle ou Davidson não precisam dedicar a maior parte de seu tempo de pesquisa à formulação ou ao desenvolvimento de argumentos que constituem DB (filosófos como Gale, Grünbaum, Fales e Martin, por exemplo, podem estar envolvidos neste projeto de pesquisa. Em vez disso, eles devem tomar conhecimento de DB (conforme desenvolvido pelos naturalistas especializados na formulação de argumentos contra B), ou eles devem conhecer pelo menos o suficiente sobre DB de modo que sua crença de que B é falso seja irrevogavelmente justificada. DB é cognitivamente acessível a filósofos como Searle ou Davidson e este fato (juntamente com outros mencionados) torna sua crença no naturalismo injustificada. O naturalista esclarecido diria que estes naturalistas ignorantes não estam cumprindo satisfatoriamente suas obrigações epistêmicas com respeito ao naturalismo e que este é um fator que contribui para o atual arrocho filosófico e cultural dos filósofos naturalistas, isto é, que eles permitiram que o mundo filosófico acadêmico perdesse sua secularização ortodoxa. O naturalista esclarecido poderia reformular isto em termos de uma teoria da virtude da justificação epistêmica. Os naturalistas ignorantes estão injustificados ao acreditar em N porque eles não exerceram uma virtude intelectual específica; os naturalistas ignorantes acreditam em N sem primeiro tentarem adequadamente determinar ou se informarem sobre o êxito dos argumentos teístas pós-1967. O naturalista esclarecido, então, pensaria ser sua responsabilidade tornar isto evidente aos naturalistas ignorantes com o motivo de tentar auxilia-los a este respeito, assim como os naturalistas ignorantes são capazes de evidenciar outros fatos aos naturalistas esclarecidos para ajuda-los em outras áreas do pensamento além de DB.
Intuitivamente falando, isto se aplica aos cientistas naturalistas num sentido aproximadamente análogo em que os filosófos naturalistas estão epistemicamente obrigados a conhecer pelo menos em linhas gerais as mais importantes teorias científicas contemporâneas, como a teoria da evolução darwiniana e a cosmologia do Big Bang. Um problema adicional com os cientistas naturalistas é que elesencontram-se a tal ponto alheados de qualquer entendimento da filosofia da religião que eles sequer tem consciência de seu alheamento, como testemunham suas obras populares sobre ciência e religião.
A situação epistêmica corrente é na verdade muitíssimo pior do que isto. O naturalista esclarecido diria que tudo o que a maioria dos naturalistas pretendem conhecer ser naturalmente o caso (ou aparentam a si próprios conhecer ser naturalmente o caso) é tal que o conhecimento disso implica o conhecimento do naturalismo, e portanto que a maioria dos naturalistas contemporâneos não conhece quaisquer verdades naturais. Não estou aqui pronunciando a declaração obviamente falsa de que (por exemplo) “saber que o universo está em expansão” implica “saber que o naturalismo é verdadeiro”. Em vez disso, estou dizendo que “saber que o universo está se expandindo naturalmente” (ou seja, está se expandindo unica e exclusivamente através de um processo natural, onde a compreensão de “naturalmente” e “natural” engloba uma compreensão do que já foi dito sobre N neste artigo)” implica “saber que o naturalismo é verdadeiro.” Uma razão para esta implicação é a seguinte: se sei que o universo está se expandindo naturalmente, sei que o sobrenaturalismo é falso uma vez que sei que uma tese logicamente implicada pelo sobrenaturalismo, que todos os processos e elementos constituintes do universo são causados ou governados por alguma realidade sobrenatural, é falsa. Como o naturalismo e o sobrenaturalismo são as únicas ontologias possíveis (veja minha discussão prévia sobre N), segue-se (do fato de que sei que o sobrenaturalismo é falso e que sei que alguma ontologia possível é verdadeira) que sei que o naturalismo é verdadeiro, mesmo que eu saiba disso apenas superficialmente, como alguma ontologia que é não-S é verdadeira, onde S é o sobrenaturalismo. Este conhecimento não precisa ser ocorrente; poderia ser disposicional. O problema com os naturalistas ignorantes é que eles estão cientes de coisas como “o universo está em expansão” mas ignoram fatos como “o universo está se expandindo naturalmente.” Eles conhecem certas verdades, mas não sabem se são verdades naturais ou verdades sobrenaturais.
A situação naturalista, conforme vista por um naturalista esclarecido, é mais merecedora de tristeza e lamentação do que de censura. Se o naturalismo é a cosmovisão verdadeira, e uma “Idade das Trevas” significa uma época em que a vasta maioria dos filósofos (e cientistas) não conhecem a cosmovisão verdadeira, então somos obrigados a reconhecer que estamos vivendo numa Idade das Trevas. Uma vez que devemos estar bem informados e esclarecidos em vez de ignorantes e alienados, e uma vez que nos é possível estar mais bem informados e esclarecidos, segue-se que devemos tentar dar um fim à Idade das Trevas vigente. Mas exatamente o que devemos fazer para “tornarmo-nos mais esclarecidos nos aspectos relevantes”? Segundo o naturalista esclarecido, existem quatro coisas que devemos fazer.
Notas
4. Wes Morriston argumenta plausivelmente em “Omnipotence and the Anselmian God,” Philo vol. 4, no. 1, (Primavera-Verão de 2001): 7–20, que Deus não é onipotente e portanto não possui este oniatributo. Acredito que o mesmo valha para outros oniatributos; por exemplo, Deus não é onisciente uma vez que Deus não conhece a proposição verdadeira irredutivelmente dêitica, Eu sou Quentin Smith. Uma definição melhor de Deus na tradição da teologia do ser perfeito é que Deus possui o grau mais elevado das propriedades engrandecedoras relevantes que as habilita serem conjuntamente possuídas pelo maior ser possível. Ainda assim, parece-me que existe um argumento lógico do mal sólido posterior a Mackie e a Plantinga; vejam “Um Argumento Lógico do Mal Sólido“, em meu livro Ethical and Religious Thought in Analytic Philosophy of Language (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1997). Um resenhitas deste livro disse que não era capaz de ver a diferença entre o meu argumento e o de Mackie. A diferença está explicada na página 156, onde também se explica porque o argumento de Mackie não é sólido.
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