Autor: Alisson Souza
Resumo: Neste artigo, proponho uma reflexão geral sobre a natureza da filosofia da religião. Na primeira etapa, tento oferecer uma noção aproximada sobre o que realmente é a filosofia da religião. Na segunda eu argumento para sua importância intrínseca. Na terceira etapa destaco três virtudes fundamentais para interessados em filosofia da religião. E finalmente, concluo minhas visões sobre essa fascinante área do conhecimento, em forma de um convite pessoal ao leitor para se juntar nessa jornada.
Mas o que exatamente a filosofia da religião investiga? Como o próprio nome sugere, ela investiga os conceitos e problemas que permeiam a “realidade da religião”, ou melhor dizendo, tudo aquilo que a idéia religiosa afirma e/ou implica. Podemos citar alguns deles: Deus realmente existe? É possível justificar racionalmente a crença na existência dele? Como compatibilizar a perfeição moral divina com a existência de fatos gerais ou particulares do mal presentes em nosso mundo? É possível que Deus crie o tempo? Se sim, como? Se não, por que?, entre outras. Como se pode notar, a filosofia da religião inevitavelmente tocará em outras áreas filosóficas, tais como metafísica, epistemologia, filosofia do tempo, da causalidade, ética, e todas, ou praticamente todas, as demais.
Indo mais além, a filosofia da religião pode ser vista como uma investigação para descobrir qual a melhor cosmovisão. Se é a cosmovisão teísta, dividindo-se em cosmovisão cristã, islâmica, judaica, Hindu, Taoísta, etc., ou cosmovisão naturalista, que incluiria materialismo [mas não necessariamente] e ateísmo. Como diz o filósofo Graham Oppy:
Resumo: Neste artigo, proponho uma reflexão geral sobre a natureza da filosofia da religião. Na primeira etapa, tento oferecer uma noção aproximada sobre o que realmente é a filosofia da religião. Na segunda eu argumento para sua importância intrínseca. Na terceira etapa destaco três virtudes fundamentais para interessados em filosofia da religião. E finalmente, concluo minhas visões sobre essa fascinante área do conhecimento, em forma de um convite pessoal ao leitor para se juntar nessa jornada.
1. O que é filosofia da religião?
Assim como em qualquer área geral do conhecimento, definir uma área particular é uma tarefa complicada. Assim, talvez seja mais proveitoso nos focarmos em uma noção que capte a essência da área em questão, do que em uma definição precisa. Dito isso, primeiro devemos nos perguntar: o que é a filosofia? Para uma noção geral, a filosofia pode ser entendida como a investigação rigorosa dos conceitos e problemas que permeiam a realidade através, não da comprovação empírica -embora possa e deva ser usado como auxílio – mas do raciocínio. Claro, entraríamos na questão de saber o que são conceitos, problemas, raciocínio, comprovação empírica e realidade, mas tratar de tais questões esta para além dos propósitos pretendidos por este texto. Para um tratamento mais completo e rigoroso sobre a natureza da filosofia, sugiro o sistemático artigo do filósofo Desidério Murcho [1]. Por enquanto, basta que entedamos que a filosofia envolve a investigação, e que portanto, a filosofia da religião também deve cair no mesmo conceito, dado que é uma sub-aréa da filosofia.Mas o que exatamente a filosofia da religião investiga? Como o próprio nome sugere, ela investiga os conceitos e problemas que permeiam a “realidade da religião”, ou melhor dizendo, tudo aquilo que a idéia religiosa afirma e/ou implica. Podemos citar alguns deles: Deus realmente existe? É possível justificar racionalmente a crença na existência dele? Como compatibilizar a perfeição moral divina com a existência de fatos gerais ou particulares do mal presentes em nosso mundo? É possível que Deus crie o tempo? Se sim, como? Se não, por que?, entre outras. Como se pode notar, a filosofia da religião inevitavelmente tocará em outras áreas filosóficas, tais como metafísica, epistemologia, filosofia do tempo, da causalidade, ética, e todas, ou praticamente todas, as demais.
Indo mais além, a filosofia da religião pode ser vista como uma investigação para descobrir qual a melhor cosmovisão. Se é a cosmovisão teísta, dividindo-se em cosmovisão cristã, islâmica, judaica, Hindu, Taoísta, etc., ou cosmovisão naturalista, que incluiria materialismo [mas não necessariamente] e ateísmo. Como diz o filósofo Graham Oppy:
Nem todas as cosmovisões são religiosas. Junto com as cosmovisões cristãs, islâmicas, judaicas, hindus, budistas, jainistas, sikhs, taoístas e assim por diante, existem cosmovisões que são, no máximo, marginalmente religiosas - por exemplo, Cosmovisões confucionistas - e visões de mundo que decididamente não são religiosas - por exemplo, cosmovisões seculares, cosmovisões naturalistas e assim por diante. No entanto, a filosofia da religião está apropriadamente preocupada com a avaliação de todos esses tipos de cosmovisões. [2]
Portanto, o processo de argumentação e clareza dos conceitos reivindicados por cada visão de mundo, seja ela teísta ou naturalista, deve ser uma preocupação do filósofo da religião.
2. Por que a filosofia da religião importa?
Se pretendemos buscar uma compreensão racional da forma como o mundo funciona, e de como estamos inseridos nele, seja pelo valor prático que isso gera, ou pelo prazer do conhecimento, que é um fim em si mesmo, ou até pelos dois, o processo filosófico é fundamental. Embora certamente a ciência seja de extrema importância para compreendermos os processos subjacentes ao funcionamento do mundo, e para o desenvolvimento tecnológico capaz de melhorar a qualidade de vida de toda uma nação, ela, a ciência, nem de longe é suficiente para a plena realização desses objetivos. Os fenômenos físicos presentes no mundo e como explicá-los são de interesse científico (embora a demarcação esteja longe de ser óbvia), mas o que tais fenômenos representam para nós, e como compreender o mundo de forma mais fundamental, ou última, como dirá Aristóteles, é de interesse da filosofia. Assim, embora a ciência possa explicar o comportamento atômico de nós, seres humanos, é a filosofia quem buscará compreender o que nós somos para além dessa estrutura atômica, se formos algo além disso.Questões pertinentes como: <Há livre arbítrio? Por que há algo ao invés de nada? O que nós somos? A vida terá algum sentido? Há valores morais objetivos? Se sim, qual sua fundamentação ontológica?> são objetos de estudo da filosofia como um todo, e consequentemente, da filosofia da religião. A importância de compreender tais questões é que elas nos ajudam a compreender quem somos. Suponha que Deus exista. Neste caso, há um ser perfeito que se preocupa conosco e nos quer em uma relação pessoal para com ele. Há também vida após a morte, consolo para os fiéis, tormento eterno para os incrédulos, uma explicação sobrenatural do mundo, isso claro assumindo a definição tradicional de Deus, que é uma dentre várias. Agora suponha que não haja Deus. Isso significa que esta vida é a única, portanto devemos aproveitá-la o máximo possível, o sentido da vida, se houver, deve ser fundamentado em algo mais próximo a nós, talvez nas nossas próprias ações, como argumenta a filósofa Susan Wolf [3]. A explicação última do mundo também não pode se dar em termos sobrenaturais, as pessoas não passarão por um julgamento pós-vida, e felizmente, ninguém passará pelo processo de tortura eterna, embora, para a tristeza de alguns (não para a minha!), ninguém passará também pela eternidade em um paraíso espiritual. A forma como vemos essas questões são capazes de moldar a forma como vivemos a vida, por isso, me parece um absurdo negar o valor intrínseco na investigação filosófica para a busca de respostas à questões tão fundamentais.
3. Como se dá o processo de filosofia da religião?
Pessoalmente falando, creio que há três principais virtudes intelectuais que são de fundamental importância para um filósofo da religião (e filósofos no geral!). São eles: (i) Humilde intelectual, (ii) interesse construtivo e (iii) investigação sincera. Falemos um pouco de cada um deles.Humildade intelectual: Se um vamos comparar visões de mundo, e defender uma específica, é necessário compreender adequadamente as visões concorrentes, bem como a complexidade das questões a serem resolvidas. Por exemplo, no teísmo, Deus é a causa do universo. Mas se Deus é a causa do universo, então trataremos de questões relacionadas a metafísica da causalidade. E se o tempo surgiu junto com o universo, como nos diz a cosmologia do Big Bang, então trataremos também de questões relacionadas a filosofia do tempo. Sabemos que os filósofos não concordam entre sí sobre a natureza da causalidade e do tempo. Alguns podem argumentar, e de fato o fazem, que uma causalidade divina é metafisicamente impossível (Oppy 2017). Isso claro criaria um enorme obstáculo para o teísta que mantém argumentos cosmológicos causais para a existência Deus. Um ateísta por outro lado acredita que o universo é regido por leis naturais (e lógicas, dependendo de suas inclinações metafísicas), e que nenhuma deidade pessoal e imaterial governa o mundo. Mas há quem argumente que o universo é finamente ajustado para o surgimento e continuidade da vida, de tal forma que apenas Deus é suposto ser a explicação adequada para tal fato. Isso claro representa um obstáculo para o ateísta/naturalista, obstáculo que ele deve procurar superar para justificar sua cosmovisão. O teísta também mantém que há um ser pessoal que nos ama e nos quer em uma relação pessoal com ele, e que, além disso, é onibenevolente. Mas há quem argumente que certos fatos, gerais ou particulares, sobre o mal são incompatíveis, ou improváveis, ou até extremamente improváveis com a existência de um ser onibenevolente que nos ama. O teísta tem então outro obstáculo a ser superado. O ateísta/naturalista sustenta que valores morais objetivos – se houver- possuem existência ontológica independente da existência de Deus. Há quem argumente que a moral não pode ser fundamentada em coisas naturais, dado que elas não possuem sentido moral, portanto qualquer moralidade naturalista é suposta ser uma ilusão. O ateísta/naturalista, claro, deve tratar de tal problema. Poderíamos ficar dias falando de problemas filosóficos que tanto o teísta, quanto o ateísta enfrenta para justificar sua visão de mundo, mas tudo até aqui é suficiente para mostrar o quão complexos são tais problemas, e portanto há espaço para uma discordância racional. O filósofo da religião, ou os interessados em filosofia da religião (como eu) devem se engajar na literatura adversária. Se você é teísta, leia Graham Oppy, Quentin Smith, Michael Tooley, Evan Fales, Paul Draper, William Rowe, J.L Schellenberg, David Hume, Michael Martin, entre outros. Eles estão entre os mais proeminentes defensores do ateísmo. Se você é ateísta, leia Alvin Plantinga, Richard Swinburne, Robert Koons, Brian Leftow, Michael Almeida, Anselmo de Cantuária, Daniel Howard-Snyder, Eleonore Stump, Josh Rasmussen, entre outros. Eles estão entre os mais proeminentes defensores do teísmo. Mas leia com vontade!
Interesse construtivo: Não basta apenas ter interesse em defender sua visão de mundo, é preciso promover o diálogo construtivo. Se cada filósofo ter interesse apenas em defender seus pressupostos filosóficos e metafísicos, o progresso pessoal será impossível, ou pelo menos improvável. Através da troca de conhecimentos, e da consideração intelectual pelo lado adversário, podemos nos sofisticar intelectualmente. No processo, podemos mudar de visão sobre fatos particulares de nossa visão geral de mundo, como por exemplo, o teísta pode se convencer de que a atemporalidade divina é problemática, e passar então a defender um Deus temporal, como faz o filósofo teísta Ryan Mullins [4]. E se você é ateísta, pode achar o subjetivismo ético tão problemático, que passará a defender uma forma realista (não-teista e até não-naturalista) da moralidade. E, se acontecer, você pode até mesmo achar a posição inicialmente adversária tão atraente, que passará então a adotá-la como visão de mundo. Não há vergonha nisso, não se você busca um espírito verdadeiramente filosófico.
Investigação sincera: Este talvez seja o mais importante. Se você está mais preocupado em buscar a verdade, do que em defender uma posição filosófica pré-estabelicida, uma compromisso não-dogmático com a razão será imprescindível. Por isso, é até aconselhável se afastar de qualquer forma de apologética, seja ela teísta ou ateísta. Isso porquê os apologistas (de ambos os lados) geralmente estão mais preocupados em derrotar seus adversários, e pegar o troféu da vitória pra si, do que em compreender de fato a realidade. Teólogos (e neste caso, filósofo também) como William Lane Craig não parecem estar preocupados no crescimento filosófico realmente, mas antes em defender suas posições religiosas pré-concebidas. Por isso não é raro ver Craig e outros do tipo atacando a posição adversária da forma mais simplista, e revelando um comportamento dogmático que por vezes beira ao anti-filosófico. Craig certamente não possui o mesmo espírito que o Richard Swinburne, o Daniel Howard-Snyder ou o Michael Almeida, que se engajam de verdade no pensamento adversário, para a promoção sobretudo do conhecimento e da verdade. Da mesma forma, “filosófos” como Sam Harris, ou cientistas como Richard Dawkins, estão tão pouco preocupados com o que os religiosos têm a dizer sobre o mundo, que comumente atacam caricaturas, achando que estão de fato atacando o teísmo. O interesse desses pensadores está muito mais voltado em destruir a religião, ao invés de entender sua complexidade, e promover o cientificismo corrosivo. Dawkins e Harris certamente não possuem o espírito de engajamento do Oppy ou do Smith. Quentin Smith até diz o seguinte:
A experiência fenomenológica diz que cada pessoa tem a característica de ” ser amável”. Isto é verdade até mesmo para meus assim chamados “adversários” filosóficos. Três de meus principais adversários teóricos na literatura filosófica são L. Nathan Oaklander, William Lane Craig e William F. Vallicella. Outros filósofos, lendo o estilo “crítico” dos artigos que escrevemos sobre cada um dos outros, assumem que nós nos “odiamos”. Na verdade, estas três pessoas são três de meus mais íntimos amigos. Nunca passou por nossas mentes que não deveríamos estimar e respeitar cada um dos outros apenas porque temos concepções diferentes sobre certos tópicos filosóficos. Nossa atitude era de que nossas críticas mútuas seriam reciprocamente úteis ao estimular reflexões adicionais sobre um tópico do interesse de ambos. [5]
Assim, parece certo dizer que a investigação sincera, preocupada em buscar a verdade e avançar o conhecimento, ao invés de massacrar o lado adversário, conduz inevitavelmente ao respeito mútuo e consideração intelectual. Por mais que você ache um argumento persuasivo, lembre-se sempre que existem pessoas tão, ou até mais inteligentes que você, e que pensam o contrário.
Conclusão
Dado tudo o que foi dito acima, podemos compreender o que de fato é a filosofia da religião, sua importância, e a forma como deve (ou no mínimo, pode) ser conduzida. Penso que para nos engajarmos verdadeiramente na busca pela verdade, precisamos confrontar e entender as visões opostas. E se dessa compreensão, nascer o respeito mútuo, melhor! Elegi três virtudes necessárias para interessados em filosofia da religião. A saber: humildade intelectual, interesse construtivo e investigação sincera. Não me parece que o apego fervoroso a crenças estabelecidas seja compatível, ao menos não de maneira plena, com o espírito filosófico. Assim, podemos seguir o conselho de Paul Draper, quando ele diz:“Minha primeira recomendação é que os filósofos da religião se distanciem de todas as maneiras possíveis da apologética, seja teísta ou ateísta. Não sou um demarcacionista na maioria das questões sobre as fronteiras entre a filosofia e outras disciplinas, mas a apologética é um caso especial. Os apologistas podem fazer uso da filosofia, mas servem a uma comunidade religiosa ou secular de uma forma que é antitética à investigação filosófica objetiva. Claro, houve uma época em que a filosofia era considerada a serva da teologia. Mas esse tempo já passou e seria um erro tentar atrasar o relógio” [6]
Nada do que foi dito aqui deve ser visto como uma resposta definitiva às questões que me propus a tratar. Antes, deve ser visto como um sincero convite ao leitor para o aprofundamento em uma área filosófica tão fascinante!
Referências
‘O que é a filosofia?’ de Desidério Murcho [Em Crítica na rede, 23 de julho de 2016]Graham Oppy sobre ‘What is Philosophy of Religion?’ [Em Philosophy of Religion, 05 de março de 2014]
'Os sentidos das vidas' de Susan Wolf [Em Crítica na rede, tradução de Desidério Murcho, 22 de março de 2009]
‘The End of the Timeless God' de R.T Mullins [Oxford University Press, 2016]
Quentin Smith em ‘Entrevista com Quentin Smith' [Em Rebeldia Metafísica, tradução de Gilmar Santos – 2013]
Paul Draper sobre ‘What is Philosophy of Religion?’ [Em Philosophy of Religion, 27 de novembro de 2013]
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